Apesar do alto investimento a longo prazo, ferrovias são essenciais na transição energética brasileira. Foto: littlewolf1989/ Adobe Stock
Desde o início da humanidade acontecem transições energéticas. Quando se fala em transporte, a tração animal foi pioneira e abriu espaço para o vapor, seguido de combustíveis fósseis. Atualmente, a principal fonte energética no horizonte é a elétrica, na mira de todos os setores de transporte. Porém, além de trocar a fonte de energia por uma questão econômica, a transição em curso atualmente visa reduzir a intensidade da crise climática.
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Em entrevista ao Mobilidade Estadão, Ellen Martins, diretora de governança e sustentabilidade da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), defende que as ferrovias são a própria transição energética no Brasil.
Intensificada e até provocada pela queima de materiais fósseis não renováveis, o aumento das temperaturas médias da Terra e o agravamento de fenômenos climáticos tem ligação direta com o petróleo. A fonte de energia fóssil é essencial no sistema capitalista globalizado, principalmente nos transportes.
Conforme levantamento da ANTF com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), o transporte rodoviário corresponde a 92,43% das emissões de dióxido de carbono (CO2) do setor de transporte de cargas no Brasil.
Por outro lado, o setor ferroviário emite apenas 1,41%. Além disso, o transporte de cargas por caminhões equivale a 67% da logística cargueira do País, enquanto as ferrovias, 21%, segundo ANTF com dados do Plano Nacional de Logística de Transportes (PNL 2035).
Isso torna a transição energética no setor de frotas e logísticas ainda mais caro e urgente. Portanto, um dos caminhos defendidos por Ellen Martins é o equilíbrio na matriz energética.
De acordo com um levantamento feito pela ANTF com o simulador de emissões do Observatório Nacional de Transporte de Logística (ONTL), o aumento de 1% da participação das ferrovias no transporte de cargas permite deixar de emitir 2 milhões de toneladas de gases de efeito estufa. “Equivalente a um sequestro anual de carbono por uma floresta de árvores nativas do tamanho da região metropolitana São Paulo”, exemplifica a diretora.
Portanto, o equilíbrio da matriz energética do transporte de cargas seria utilizar de forma mais eficiente os diferentes modais possíveis. Dessa forma, é possível valorizar as vantagens de cada um, como, por exemplo, a flexibilidade do rodoviário e a alta capacidade do ferroviário.
“Por isso que curtas distâncias sempre vão ser o rodoviário, não vai ter essa coisa de que eu tirei a carga do outro, sempre todos estarão trabalhando, mas de uma forma equilibrada”, defende Ellen.
Aliás, conforme a especialista, cada país tem seu equilíbrio, mas um local como o Brasil, com dimensões continentais, chegar aos 40% de participação ferroviária seria o ideal.
Além de emitir menos gases de efeito estufa, o setor ferroviário fica muito competitivo quando assunto é capacidade de transporte. Principalmente em longas distâncias, com mais de 400 quilômetros de trajeto.
De acordo com a ANTF, uma locomotiva com 120 vagões tira 360 caminhões da estrada. Porém, Ellen ressalta que cada meio de transporte tem o seu espaço. Portanto, as grandes distâncias e volumes podem ocorrer por meio de trens, enquanto o transporte mais local, com carácter distribuidor, deve ser rodoviário.
“Ela é a própria transição energética”, defende Ellen sobre o uso da estrutura ferroviária. A diretora explica que mesmo sem ampliação da malha ferroviária e apenas o crescimento do uso atual já é uma atitude de transição energética.
Além disso, ela defende incentivos para o crescimento dos investimentos. Para ela, o simples uso mais eficiente da estrutura já existente atrairia investimentos relevantes. Entretanto, apesar do setor privado ser o principal investidor, a diretora acredita que o poder público precisa entrar na conta, seja com recursos quanto alterações de questões regulatórias.
Até recentemente, o simples investimento em ferrovias não estava contemplado em nenhum programa de incentivos ligado a sustentabilidade. Porém, o Fundo Clima do Banco Nacional de Desenvolvimento to (BNDES) incluiu esses investimentos no texto. Antes dessa alteração, o documento previa apenas apoio a eletrificação das ferrovias, o que é um retrocesso, na opinião de Ellen.
“Estudos internacionais já mostram que o custo para 1 km de construção de ferrovia elétrica são US$ 2 milhões”, explica a diretora. “A nossa malha ferroviária hoje são 31 mil km. É um retrocesso, refazer tudo para ser um modelo de eletrificação”, defende.
“Precisamos de créditos, financiamentos, independentemente de ser sustentável ou é a questão da sustentabilidade tá no foco, ou não”, conclui. Portanto, o crescimento e melhor uso da estrutura ferroviária já faria a diferença esperada para um País como o Brasil, que precisa reduzir suas emissões e mostrar sua intenção de ser ator principal na transição energética.
Por isso, em maio, a Coalizão para a Descarbonização do Transporte vai publicar um documento com estudos inéditos sobre o tema.
Atualmente, a maior parte dos recursos aplicados na malha ferroviária brasileira é de origem privada. Segundo Ellen, da década de 1990 até 2024, foram R$ 180 bilhões privados, enquanto o setor público aplicou R$ 26 bilhões. Além disso, ela ressalta que a estimativa é em mais R$ 54 bilhões até 2028 de investimentos privados.
“Isso tudo vem das prorrogações de contratos antigos”, ela explica. ”As empresas passaram a ter obrigação de investir, o que não aconteceu lá na época da desestatização”, contextualiza Ellen. Portanto, a renegociação dos contratos permitiu incluir esses investimentos, com regras mais claras, permitindo maior estabilidade. Atualmente, 14 sistemas ferroviários, desestatizados ou privatizados, funcionam no Brasil.
Entretanto, a diretora acredita que falta ainda mais uma alteração relevante na dinâmica dos investimentos. De acordo com Ellen, os recursos provenientes dessas prorrogações de contratos não ficam no setor. Ou seja, o setor público injeta esses valores em outras áreas, como saúde e educação. Dessa forma, o setor ferroviário fica refém de vontades políticas.
Infelizmente, o investimento na malha ferroviária é de longo prazo e de alto custo, o que afasta destinação de emendas e recursos públicos por parte dos governos e legislativo.
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