A imagem construída pela cultura pop de uma cidade inteligente não é preenchida apenas por carros voadores e casas automatizadas. Uma das ideias mais populares do futuro passa pelo espalhamento de câmeras e reconhecimento facial por ambientes públicos e privados para promover melhorias para a população. Há, no entanto, uma série de críticas por trás desse tipo de inovação.
Os possíveis benefícios das câmeras de reconhecimento facial são notórios. Elas propõem auxiliar na localização de pessoas desaparecidas, na coleta de dados para inteligência nos transportes, na redução de atritos, no planejamento de serviços públicos e, principalmente, no combate à criminalidade. Garantir segurança à população é um dos grandes chamarizes da tecnologia.
É para coibir atividades criminosas, por exemplo, que o Metrô de São Paulo utilizaria câmeras de reconhecimento facial nas estações. A Linha 3-Vermelha receberia 1.381 câmeras com inteligência artificial para identificação de pessoas. Quando estivesse 100% completo, o sistema contaria com, aproximadamente, 5 mil delas em todas as estações das linhas 1-Azul, 2-Verde, 3-Vermelha e 15-Prata.
O pregão do projeto Smart Sampa, que estava marcado para acontecer na segunda-feira (5), foi suspenso após questionamentos e controvérsias. E não foi a primeira vez que algo do tipo aconteceu. Em 2021, a ViaQuatro foi condenada a pagar R$ 100 mil pela captação de imagens por câmeras de reconhecimento facial sem o consentimento dos passageiros.
A possibilidade de viver em uma cidade permanentemente monitorada por câmeras é um tópico comum levantado por pessoas que enxergam esse cenário como uma distopia. “Há uma grande discussão sobre os limites da tecnologia para o fomento de um ‘sociedades de vigilância’, como se vê em países como a China”, exemplifica Ana Viana, doutoranda em direito público e digital na UFPR e na Paris 1 Sorbonne.
Para ela, a principal falha do sistema é no campo da segurança pública. “Apesar da crença de que a tecnologia é neutra, a inteligência artificial reproduz desigualdades. Se a sociedade é discriminatória, o reconhecimento facial também vai ser”, argumenta. O receio de pesquisadores do tema é que, ao utilizar câmeras de reconhecimento facial para identificar infratores, as forças públicas fomentem preconceitos.
A tecnologia de reconhecimento facial enfrenta resistência e foi até suprimida mundo afora. Diversas cidades dos Estados Unidos, por exemplo, proibiram a utilização e a Comissão Europeia defendeu o banimento da tecnologia para atividades voltadas à segurança pública. As opiniões contrárias se apoiam no histórico de falsos positivos que acontecem com pessoas negras, mulheres e transgêneros.
“Essa é uma forma publicitária de pregar segurança, de vender uma cidade moderna e eficiente. Entretanto, os erros cometidos pelas tecnologias de reconhecimento facial, que se equivocam mais com pessoas que já são bastante violadas pelo sistema, podem impulsionar ainda mais a discriminação”, acredita Pablo Nunes, doutor em ciência política e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Bruno Bioni, diretor-fundador do Data Privacy Brasil, entende que São Paulo estaria na contramão da tendência global de ser mais precavido no uso de reconhecimento facial. Na sua opinião, além do risco discriminatório e dos potenciais danos sociais, esse é um investimento ruim.
“Pessoas que forem presas incorretamente podem ir atrás dos seus direitos e usar a ineficiência da máquina pública para buscar indenizações”, ilustra. “Isso sem contar o risco de incidentes de segurança por causa do roubo de dados biométricos e de identidade”, adiciona.
Na última sexta-feira (02), a prefeitura de São Paulo anunciou a suspensão do pregão eletrônico para fornecimento e manutenção de equipamentos e infraestrutura da Plataforma de Videomonitoramento Smart Sampa.
A primeira versão do edital indicava que as “pessoas suspeitas” poderiam ser identificadas de acordo com a cor da pele, além do sistema tornar possível monitorar “vadiagem”.
Alvo de críticas, o projeto tem o objetivo de instalar 20 mil câmeras até 2024 com investimento de R$ 70 milhões por ano. A proposta é utilizar as câmeras para reconhecer “atitudes suspeitas, pessoas procuradas, placas de veículos e objetos perdidos”.