A quarentena foi abandonada por muitos brasileiros a partir do final de agosto. Disparou, desde então, o número de pessoas que voltaram a frequentar lugares que estavam sendo evitados por conta da necessidade de distanciamento social, especialmente parques, praias e outros locais de lazer.
A descrição acima não é fruto de uma percepção: é baseada na análise da mobilidade dos brasileiros feita a partir dos celulares. Durante a pandemia, esse recurso passou a ser amplamente utilizado, em diversas frentes, para monitorar em larga escala os deslocamentos da população.
Um desses monitoramentos vem sendo feito pelo Google em 135 países. A empresa utiliza dados fornecidos pela opção “histórico de localização” dos celulares, mesma tecnologia que permite definir os horários de pico dos estabelecimentos, informação disponibilizada aos usuários do Google Maps.
A metodologia para analisar a adesão à quarentena parte de um valor-base, resultado da média de um período de cinco semanas (entre 3 de janeiro e 6 de fevereiro) anteriores ao agravamento global da pandemia. O nível de movimentação das pessoas em relação a essa referência vem sendo apurado semana a semana desde então.
A situação geral do Brasil em meados de setembro era clara: só locais de trabalho e estações de transporte público continuavam com movimentação abaixo do valor-base. Os estabelecimentos de varejo e lazer (restaurantes, cafés e shoppings), parques, praias, mercados e farmácias estavam em patamar superior ao período anterior à pandemia.
A decisão tomada por muitos brasileiros de abandonar a quarentena ou reduzir consideravelmente o seu rigor fica mais transparente em duas estatísticas principalmente.
Até o início de setembro, tanto a movimentação em estabelecimentos de varejo e lazer quanto em parques, praias e praças vinha se mantendo entre 20% e 40% abaixo do valor-base.
A partir do final de agosto, contudo, a presença das pessoas nesses locais – e nem todos foram reabertos ainda em algumas cidades – foi crescendo gradualmente até chegar, na metade de setembro, a 9% acima do valor-base nos estabelecimentos de varejo e lazer e a 3% em parques, praias e praças.
A análise dos relatórios do Google leva à conclusão de que os brasileiros parecem ter perdido completamente o receio de frequentar todos os tipos de lugares, exceto o transporte público. Em meados de setembro, as estações de ônibus, metrô e trens ainda apresentavam uma movimentação 16% inferior ao valor-base.
É um número que certamente tem relação com outro: o volume de pessoas em locais de trabalho é, ainda, 10% menor do que antes da pandemia. Pode-se atribuir parte desse percentual à prática ainda provisória ou definitiva de home office, mas há também uma parcela que se deve à extinção de postos de trabalho. As universidades e escolas também continuam fechadas.
Caso a pandemia se prolongue, há uma preocupação dos gestores públicos e dos estudiosos da mobilidade sobre os efeitos do maior uso de transporte individual motorizado, impulsionado pelo desejo de prevenção contra a covid-19.
“As consequências imediatas dessa percepção e posterior migração entre os modos de transporte seriam congestionamentos, poluição e acidentes. Em seguida, decorrente desse processo, haveria um sucateamento do transporte público, sem usuários suficientes para manter a oferta dos serviços”, avaliou o artigo
“Estrutura urbana e mobilidade populacional: implicações para o desenvolvimento social e disseminação da covid-19”, publicado em agosto na “Revista Brasileira de Estudos de População”. O texto é assinado pelos pesquisadores Guilherme Leiva, Douglas Sathler e Romulo Orrico Filho, integrantes de diferentes centros de estudos de transportes em universidades do País.
Preocupadas em evitar esses possíveis efeitos, as empresas que atuam no transporte coletivo, tanto urbano quanto interestadual, estão empenhadas em divulgar os procedimentos adotados para reduzir os riscos de contaminação.
Mesmo com todas essas turbulências, o período da pandemia, que já se estende por mais de seis meses no Brasil, poderá trazer benefícios à mobilidade, como a criação de laboratórios para aprimorar a análise da movimentação das pessoas a partir de grandes números.
Recursos de inteligência artificial associados a big data serão cada vez mais importantes para o planejamento da mobilidade – cujas estratégias dependem fortemente da capacidade de prever como ocorrerão os deslocamentos da população e de ajustar o mais rapidamente possível o nível da oferta de serviços à demanda real.