Quem mora na capital paulista certamente já deve ter ouvido falar de Renata Falzoni, jornalista, arquiteta e urbanista, fotógrafa, cicloativista e, a partir deste ano, também vereadora eleita pelo PSB com 30.206 votos. Trabalhando na Câmara Municipal desde o primeiro dia útil deste ano, ela canaliza toda sua energia em prol de uma mobilidade urbana mais sustentável e inteligente, incentivando os deslocamentos por bicicleta, a pé, o transporte público e os direitos dos ciclistas.
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“A capital paulista é um tornado, sempre com muita coisa acontecendo na mobilidade ao mesmo tempo. Nesse sentido, nosso trabalho é fazer com que esse tornado tome a direção correta”, diz. Leia, a seguir, a entrevista dada por Renata com exclusividade ao Mobilidade Estadão.
Renata Falzoni: Vejo a mobilidade em bicicleta como uma política pública de pouco investimento e muito importante para a cidade de São Paulo. Infelizmente, na gestão municipal anterior e na atual, observamos um gradual decréscimo dessas estruturas e a confirmação do pouco interesse pelo poder público nelas.
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E isso não é uma opinião minha, mas sim um fato. Basta observar os números: o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), prometeu 300 km de estruturas e entregou apenas 50 km. Se fizermos as contas corretamente, vemos que, na verdade, foram tirados 80 km, porque quando algumas estruturas são recapeadas e elas voltam mais estreitas e, assim, mais perigosas.
Então, a mensagem dada pela Prefeitura de São Paulo é clara: os ciclistas não merecem esses espaços. E se não é essa a mensagem que querem passar, é preciso que mudem de atitude.
O que faremos é uma auditoria cidadã a cada seis meses, sobre diversos desafios da cidade, começando pelas ciclovias. Com ela, queremos entender em quais regiões essas estruturas sumiram, onde não possuem zeladoria e viraram pontos de descarte de lixo, onde elas estão com sinalização apagada, onde voltaram mais estreitas do que eram e em quais locais elas viraram estacionamento de carros privados ou mesmo de veículos públicos.
Dessa forma, faremos um mapeamento grande que vai virar um documento, feito com a ajuda dos cidadãos. Acredito que isso irá ajudar o departamento de uma única pessoa dentro da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) que cuida das estruturas cicloviárias. O objetivo paralelo dese trabalho será orientar a Prefeitura sobre onde fazer os investimentos.
Entretanto, com relação às estruturas cicloviárias prometidas e não entregues, o foco do trabalho será com reuniões, ofícios e discursos em plenária, cobrando políticas públicas que foram compromissadas. Esse é outro front desse mesmo trabalho.
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Falzoni: Para uma cidade ser resiliente, inclusiva e com boa mobilidade urbana, é preciso alimentar o transporte público coletivo combinado à mobilidade ativa. Seja por bicicleta, patinete, caminhada ou outros. Assim, o transporte coletivo precisa funcionar de forma isolada do congestionamento de automóveis, por corredores de ônibus, como um sistema isolado do congestionamento.
E com isso eu quero dizer que o congestionamento é uma externalidade do excesso de uso do automóvel e não existe obra pública, seja túnel, viaduto ou alargamento de via, enfim, não existe nenhuma infraestrutura capaz de eliminar o congestionamento, porque o espaço na cidade é finito e quanto mais espaço, mais carros irão ocupá-lo.
Entretanto, é possível resolver os engarrafamentos com transporte público e mobilidade ativa, combinação que vem sendo aplicada com sucesso em vários países do mundo. E para isso é preciso oferecer bicicletários, infraetruturas cicloviárias em boas condições, calçadas decentes, iluminação pública. Ou seja, é necessário que seja tratado como um sistema de mobilidade.
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Falzoni: Eu acredito que não podemos negar às pessoas opções de mobilidade, ou, nesse caso, de micromobilidade. E que a solução para mobilidade passa por tirar as pessoas dos automóveis e fazer com que elas se desloquem de forma multimodal, seja caminhando, seja por patinetes, monociclos, bicicletas, autopropelidos, e outros.
Só que quando você tira uma pessoa do carro e ela vai para o patinete, modal que pode rodar em vias de 40 km/h, você não consegue conectar o ponto A ao ponto B apenas por essas vias. Então, para acomodar todos esses modais, uma solução seria retomar o trabalho de acalmamento do tráfego, com avenidas com velocidade máxima de 50 km/h.
Acredito que nenhuma pista da direita de avenidas da cidade de São Paulo poderia ter velocidade acima de 40 km/h, o que poderia acomodar com muito mais segurança todos esses equipamentos. Especificamente sobre a questão dos patinetes, estamos fazendo um trabalho em nosso gabinete de entendimento dos problemas, como estações virtuais para devolução que não estão sendo respeitadas, patinetes elétricos parados no meio da ciclovia, na calçada, no meio-fio, equipamentos usados incorretamente e que não estão sendo bloqueados, entre outros.
Em resumo, entendo que esses gadgets, quando usados de maneira criteriosa e segura, contribuem muito com o sistema de mobilidade. E esse trabalho que estamos fazendo tem como objetivo entender os desafios e propor soluções.
Falzoni: Eu gravei um vídeo sobre isso e muita gente achou que sou a favor. Mas, na verdade, sou a favor desse debate. O que vejo é que existe um problema gritante, especialmente para mulheres que moram nas periferias, de falta de segurança nas franjas da cidade. Isto é, do último transporte público até suas casas, onde uma rápida caminhada significa o risco de ser assediada ou até mesmo estuprada.
Então, essas mulheres – e outras pessoas, obviamente – dão preferência a esse serviço para fugir da violência, mas também porque o sistema de transporte público não chega onde elas precisam dele. Segundo dados da 99, em 1 bilhão de viagens do serviço de moto-táxi feitas em outros Estados do Brasil, a taxa de sinistros com óbitos foi de 0,000009%. Não tenho como checar esses números, são dados internos da plataforma, e também é importante questionarmos sobre as lesões.
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Mas o ponto que quero chegar é que a maioria dos sinistros com mortes e lesões acontece com motociclistas que trabalham com entrega. E isso não é debatido pelo Poder Público. São homens, geralmente negros e periféricos, que são submetidos a um trabalho que recompensa a pressa e o excesso de velocidade para cumprir os prazos de entrega das plataformas. Para isso não existe uma regulação do contratante. Me questiono porque a lógica de premiação dos entregadores não poderia prezar pela vida, com entregas seguras e que contribuam com toda a sociedade.
Então, o que temos é um descumprimento geral das regras de trânsito por esses motociclistas de entrega, desrespeito aos semáforos e aos limites de velocidade que coloca todos em risco e uma prefeitura que largou mão da fiscalização – há estudos mostrando que o aumento de número de mortes está diretamente ligado à redução da fiscalização e a diminuição de multas cobradas. Então, é necessário discutir esse tema de maneira mais ampla, considerando todas as modalidades de serviço.
Falzoni: É fato que a SPTrans precisa melhorar. Mas é importante reforçar que ela é um órgão voltado para prestação de um serviço público, voltado para gestão pública. Porque o transporte público coletivo é um direito do cidadão. Dessa forma, eu vejo com muita desconfiança essa proposta da prefeitura de passar a SPTrans para a SPRegula.
Então, caso a gestão desse serviço seja feita pela SPRegula, tiramos totalmente a característica pública dele. Na última licitação, está previsto o pagamento dessa atividade por serviço. Ou seja, o ônibus vai do ponto A ao B e a remuneração é feita dessa forma. Mas hoje isso ainda não acontece e o serviço está sendo pago por passageito transportado.
Então, como isso não muda, abre-se a possibilidade dessas empresas de ônibus de segurarem um veículo sem nenhum prejuízo para elas próprias. Isso porque elas serão remuneradas de qualquer forma. E, assim, a regularidade do serviço é prejudicada e os ônibus estarão sempre lotados. Já está prevista essa mudança na última licitação, mas isso ainda não aconteceu.
Nossa principal preocupação em relação ao transporte coletivo é a precariedade dessa prestação do serviço, porque há possibilidade de uma espiral negativa que começa com o aumento da tarifa, diminuição da frequência de veículos nas ruas e a consequente piora na qualidade do serviço, perda de credibilidade no sistema e abandono ainda maior pelos usuários.
Já temos dados da última pesquisa Origem e Destino, do Metrô, que os deslocamentos a pé saltaram de 33% para 42% na cidade. O que revela esse abandono de usuários do sistema e o fato de que as pessoas não estão conseguindo pagar a tarifa. Temos de evitar de qualquer forma a precarização do sistema de transporte, que tem como uma de suas consequências o aumento do transporte clandestino, da falta de segurança e perda de controle pelo poder público.
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