Desafios do transporte por ônibus em São Paulo

São Paulo tem um sistema monocêntrico, no qual os empregos estão concentrados na região central. Foto: Werther Santana | Estadão

10/08/2020 - Tempo de leitura: 8 minutos, 40 segundos

Na maioria das cidades brasileiras, os usuários são responsáveis pelo pagamento dos custos operacionais das empresas de transporte urbano, como os das companhias particulares de ônibus. Isso quer dizer que o faturamento delas advém da tarifa paga pela população. Em São Paulo, é diferente: o transporte coletivo é subsidiado pelo poder público. Além do valor arrecadado com a tarifa, pago pelos passageiros, a prefeitura também contribui com um valor adicional.

Segundo a SPTrans, esse subsídio no sistema de transporte coletivo municipal é um instrumento de política pública, que possibilita manter a tarifa em um patamar inclusivo e oferecer benefícios ao cidadão, como gratuidade a idosos, estudantes e pessoas com deficiência, além de permitir a integração gratuita com três ônibus, integração com desconto com o sistema sobre trilhos e garantir a operação do transporte público. Se não houvesse esse subsídio, a tarifa atual seria de R$ 7,12.

Além do valor arrecadado com a tarifa, pago pelas pessoas, a prefeitura também contribui com um valor adicional. Entenda nesta entrevista com Ciro Biderman, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em administração pública e economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), e um dos participantes do Summit Mobilidade Estadão 2020, que acontece em 12/08, as vantagens e desvantagens desse modelo e os desafios que todo o sistema de transporte enfrenta durante e após a pandemia.

Como funciona o subsídio do transporte urbano coletivo de ônibus em São Paulo?

Ciro Biderman: São Paulo tem uma forma muito particular de subsídio, que começou na gestão da Luiza Erundina como prefeita (1989–1992), que foi chamada de municipalização, quando os pagamentos para as empresas eram determinados pela quilometragem rodada pelos ônibus, e não pelo número de passageiros transportados, numa tentativa de reduzir a superlotação.

Ela foi a primeira a questionar o modelo-base, que predomina até hoje no País, em que a linha é concedida e a empresa de ônibus sobrevive com o que arrecada em função do número de passageiros.

Quando o Paulo Maluf foi eleito em 1993, isso mudou, mas, na gestão de Marta Suplicy, em 2004, uma forma de cobrança muito particular foi adotada: o que o usuário pagava de tarifa era destinado a uma “conta sistema”, administrada pela SPTrans, que repassava para as empresas o valor combinado por passageiro.

Ou seja: a diferença entre o total “real” da passagem e o valor da tarifa era pago para a empresa de transportes com recursos da prefeitura. Isso aconteceu até 2018, quando novamente o sistema mudou e passou a cobrar por quilômetro rodado.

Então, hoje quase não importa a quantidade de passageiros transportados, já que apenas um pequeno percentual da composição da passagem está relacionado a esse componente.

O que conta é o quanto o veículo roda e todos os custos decorrentes, como manutenção, despesas com funcionários, impostos, entre outros gastos. Não tenho valores deste ano, mas, em 2019, a prefeitura gastou cerca de R$ 3 bilhões com o subsídio ao transporte por ônibus.

Quais as principais características desse modelo adotado pela cidade?

Biderman: O grande atrativo do modelo de pagamento por quilômetro rodado é que as operadoras não têm interesse em superlotar os ônibus, porque não ganham praticamente nada com isso. Então, esse sistema poderia ser um ganho importante para o passageiro.

Teoricamente, poderia ser definido um serviço com determinada qualidade, frequência de partidas, número de entregas e de viagens e as operadoras atenderiam a essas exigências. O que, em teoria, poderia dar um bom nível de conforto aos usuários do sistema de transporte.

Mas não é o que vemos na prática, não é mesmo?

Biderman: São Paulo tem um problema grave, estrutural, que ocorre em outras grandes cidades brasileiras com população a partir de 250 mil habitantes. É um sistema monocêntrico, em que os empregos estão concentrados na região central e a população se desloca diariamente para lá.

Essa característica torna a administração do transporte público difícil, porque há um volume enorme de pessoas indo aos mesmos locais, e esses veículos voltam vazios ao reabastecimento de passageiros. Tudo isso gera um custo adicional ao transporte. Também é sabido que existem linhas superlotadas e outras com espaço sobrando nos veículos.

Esse é o planejamento que precisa ser feito. Minha principal crítica ao sistema de pagamento por quilometragem é que, dessa forma, o operador não tem muito incentivo para implementar melhorias com foco na qualidade do serviço. Por exemplo: as linhas vazias poderiam ser redistribuídas pela cidade, mas não é o que acontece.

Esse sistema é viável, pensando também no cenário pós-pandemia?

Biderman: A pandemia tem questionado todos os sistemas de transporte, não apenas os de São Paulo, mas de todo o Brasil. Quando se concede o sistema de ônibus, você, primeiro, entende sua demanda e faz um planejamento, levando em conta a quantidade de ônibus, o número de viagens, o número de passageiros, entre outros aspectos.

Então, as empresas compraram os veículos, contrataram motoristas e cobradores em função disso tudo. Aí veio a crise e, no resumo, as empresas viram sua receita despencar, ao mesmo tempo que continuam carregando esses custos. São Paulo teve ainda uma complicação adicional, porque foi a própria cidade que precisou cortar o número de veículos para respeitar o limite de viagens que foi estabelecido.

No início, foi diminuído linearmente, causando até aglomerações em algumas linhas. Mas, depois, foi sendo ajustado. Como fenômeno extremo, a pandemia acentuou o que já acontecia: falta de ônibus onde as linhas já eram cheias e veículos vazios onde isso já ocorria. Tudo isso deixou explícito o quanto a rigidez do sistema de transporte público é arriscada, sobretudo em momentos críticos como os que vivemos.

O senhor avalia ser correto as empresas receberem recursos públicos?

Biderman: Sim, mas discordo da maneira como essa ajuda tem acontecido. Nos Estados Unidos, a maioria dos sistemas de transporte é pública e a ajuda vai para os departamentos de transporte, que fazem o repasse para as agências.

Aqui, no Brasil, meu incômodo é que esse dinheiro vai ser entregue diretamente às empresas. Historicamente, quem consegue acessar recurso público são as grandes companhias: elas estão preparadas e conseguem o crédito.

Um resultado quase garantido da pandemia será uma concentração ainda maior dentro desse setor. Não me surpreenderia se sobrar, no final, apenas oito grupos operando. Hoje, existem empresas menores prestando serviços mais locais, que fazem um contraponto e concorrem dentro desse cenário. Infelizmente, a tendência é de que essas pequenas operadoras não sobrevivam.

Ainda em relação ao subsídio, existem boas práticas em outros países ou cidades nos quais São Paulo poderia se inspirar?

Biderman: Que seja do meu conhecimento, nenhuma outra cidade brasileira subsidia o transporte público. Um caso que poderia servir de inspiração é a cidade de Londres. Lá o pagamento se dá por quilômetro rodado, mas o operador possui exigências rígidas de qualidade.

Por exemplo, ele precisa garantir todas as partidas previstas e, caso isso não ocorra, não recebe o valor equivalente. O operador também precisa garantir que o intervalo entre as viagens seja regular, garantindo um desvio padrão de um minuto no máximo.

Para entender o que isso significa, imagine que o intervalo entre os veículos seja de 10 minutos; 2/3 das viagens teriam que ter o seu intervalo entre 9 e 11 minutos e 95% das viagens teriam que ter intervalos entre 8 e 12 minutos. Se o sistema é subsidiado da maneira que é por aqui, deveria ser exigido um padrão de serviço de alta qualidade.

O que pode ser feito para retomar a confiança das pessoas no transporte público?

Biderman: É fato que, em um primeiro momento, os ônibus vão operar com um número reduzido de pessoas por veículo, com um controle maior da superlotação.

Claro que imaginar que todos os passageiros vão viajar sentados não é viável: nos horários de pico, isso é impossível – a frota precisaria ser multiplicada por três ou quatro. Existe uma oportunidade de reduzir aglomerações nesse primeiro estágio.

Adicionalmente, é fundamental que as pessoas vejam que todos os processos de higiene e desinfecção estão sendo feitos, e todos devem seguir usando máscara.

Inclusive acredito que uma boa medida seria eliminar a função de cobrador e capacitá-lo para esse trabalho de desinfecção, porque ele acaba sendo um condutor da doença, tendo contato com todos os usuários e com dinheiro. O que precisa é da confiança, e isso se faz garantindo aos usuários que os ônibus são seguros, um trabalho que deve ser contínuo.

Quanto é o subsídio ao transporte público municipal

Confira os valores nos sete primeiros meses de 2020

Janeiro: R$ 184.229.622,00

Fevereiro: R$ 189.897.414,00

Março: R$ 187.063.518,00

Abril: R$ 287.063.518,00

Maio: R$ 287,718,240,00

Junho: R$ 267,698,483,90

Julho: R$ 267.698.483,90

Total: (JAN.—JUL./2020): R$ 1.671.369.279,80

Saiba mais:

  • Se não houvesse o subsídio ao sistema, a tarifa em janeiro de 2020 seria de R$ 7,12. Ou seja, R$ 2,72 acima dos atuais R$ 4,40;
  • A frota é composta por 11.001 ônibus;
  • Antes da pandemia, em média, cerca de 3,3 milhões de pessoas eram transportadas diariamente pelos ônibus municipais;
  • As empresas que atendem aos bairros mais afastados estão operando com 92,5% da frota para transportar 50% da demanda;
  • Em média, a frota da cidade está operando com 85,85% dos veículos para 49% dos passageiros.

Fonte: SPTrans

Nosso entrevistado

Ciro Biderman, 54 anos, é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em administração pública e economia da Fundação Getulio Vargas (FGV). Também é pesquisador da Cepesp FGV, pesquisador afiliado ao Departamento de Estudos Urbanos e Planejamento (Dusp), do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Doutor em economia pela FGV, em 2001, e pós-doutorado no MIT, em 2007. Foi chefe de gabinete da Companhia de Trânsito de São Paulo (SPTrans), de 2013 a 2015, e diretor de inovação da Prefeitura de São Paulo, em 2016.