Há pouco mais de dez anos, a “Década de Ações para a Segurança no Trânsito” – lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e com base em um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) – nascia com o objetivo de poupar 5 milhões de vidas até o ano passado. Os dados contabilizavam 1,35 milhão de mortes por acidente de trânsito (uma pessoa a cada 24 segundos) em 178 países e cerca de 50 milhões de sobreviventes com sequelas.
Além do dano irreparável sobre 3 mil vidas perdidas por dia nas estradas e ruas, esses acidentes custam US$ 518 bilhões por ano, ou um percentual entre 1% e 3% do Produto Interno Bruto (PIB) de cada país. O Banco Mundial estima que países que não investem em segurança viária podem perder entre 7% e 22% de potencial crescimento do PIB per capita em dois anos, devido a mortes e invalidez causadas por colisões de trânsito. Entre 2009 e 2018, cerca de 1,6 milhão de brasileiros feridos em desastres no trânsito geraram custo direto de quase R$ 3 bilhões para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Se nada for feito para alcançar melhores metas, a OMS projeta que as mortes no trânsito continuarão aumentando: serão 2,4 milhões delas a cada ano até 2030, e entre 20 milhões e 50 milhões de sobreviventes a cada ano com traumatismos e ferimentos. “Sinistros de trânsito são um evento complexo e influenciado por diversos aspectos, que vão desde o comportamento humano, as questões da via e as condições dos veículos”, resume José Aurelio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), organização social sem fins lucrativos com a qual o Mobilidade Estadão firmou parceria, neste mês de maio, com o objetivo de abraçar a causa da segurança viária.
Ainda que iniciativas que promovem o respeito às regras de trânsito por meio de educação, campanhas, treinamento profissional, regulamentação e fiscalização sejam muito válidas, também é preciso incluir nessa complicada equação as questões sistêmicas, de projeto e de infraestrutura que afetam a habilidade de as pessoas se deslocarem com segurança.
“Por mais que o País ainda tenha muita dificuldade na articulação nacional dos planos de redução de sinistros de trânsito, a participação dos municípios com as políticas locais de segurança viária tem papel fundamental para a redução nos índices gerais de mortalidade nesse âmbito”, acrescenta Paulo Guimarães, presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Mobilidade Urbana. “Ações realizadas individualmente pelas cidades como a municipalização do trânsito, investimentos em calçadas, ciclovias e fiscalização de trânsito devem estar entre os movimentos que complementam as iniciativas de conscientização.”
Lesões permanentes, cicatrizes, incapacidade motora parcial ou total, aposentadoria compulsiva são só algumas das consequências mais evidentes do estrago provocado pelas tragédias no trânsito. “Um acidente pode ser um gatilho para outros transtornos mentais, especialmente se a pessoa já possui predisposição para quadro depressivo ou ansioso”, explica o médico Álvaro Cabral Araújo, pesquisador e colaborador do Programa Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC).
“Cerca de 10% das pessoas que passam por um evento traumático podem desenvolver transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que ocorre após exposição grave, em que a integridade física ou a vida sejam colocadas em risco. Pessoas com predisposição biológica ou com transtornos psiquiátricos apresentam maior risco de desenvolver TEPT, mas existem outros fatores que podem influenciar.”
O especialista cita a importância do acolhimento que a pessoa recebe após o evento. “Amparo social e psicoterapia também podem ter um efeito protetor para que a pessoa não desenvolva novas patologias, tal como ‘os primeiros socorros psicológicos’”, explica.
Os sintomas (veja abaixo) após um evento traumático podem ser vários, tidos como relativamente “normais” nas primeiras horas e nos três primeiros dias. Mas, se eles persistem após 30 dias, deve-se considerar a psicoterapia associada a uso de fármacos para melhores resultados no tratamento (que pode levar de seis meses a dois anos). “Dependendo do tipo de sequela, com limitações da funcionalidade e mudanças de vida muito significativas, como a invalidez, é preciso se adaptar a uma nova realidade, havendo necessidade de um acompanhamento contínuo.”
Certos quadros psiquiátricos ainda podem levar a aumento de comportamentos de risco. Indivíduos com maior impulsividade são mais sujeitos a se envolver em acidente de trânsito e alguns transtornos relacionados a uso de substâncias como álcool, drogas e medicamentos também podem aumentar tais riscos. “Cuidar da saúde mental, de forma geral, tem um impacto positivo na prevenção de mortes nas vias”, reforça Araújo.
• Revivescências, conteúdo do trauma voltando repetidamente à memória da pessoa;;
• Evita o assunto, se esquiva, não consegue entrar em um carro e/ou dirigir, medo de situações parecidas;
• Alterações negativas na cognição, podendo desenvolver um quadro semelhante ao depressivo, de desânimo, visão mais negativa de si mesma e do mundo, dificuldade de conexão, culpa, vergonha (quando há perdas);
• Alterações reativas (hiperexcitação ou hiper-reatividade), sobressalto, hipervigilância, insônia, problemas de concentração, irritação;
• 1,6 milhão de brasileiros feridos (entre 2009 e 2018) em desastres no trânsito geraram custo direto de quase R$ 3 bilhões para o Sistema Único de Saúde (SUS)
• 310.710 indenizações foram pagas em 2020 – apenas 12% a menos do que no mesmo período de 2019, apesar da menor circulação de veículos nos meses iniciais da pandemia
• 210.042 indenizações foram destinadas a casos de invalidez (67%)
• 67.138 delas para reembolso de despesas médico-hospitalares (DAMS), queda de 13% em relação ao mesmo período de 2019
• Cerca de 152 mil indenizações na faixa mais atingida (25 a 44 anos), representando 49% do total das indenizações pagas
• 79% das indenizações pagas no período por acidentes com motocicletas (que representam apenas 29% da frota nacional): 71% foram para invalidez permanente e 7% para morte
• Em 2º lugar, ficaram os pedestres, com 29% do total de indenizações, sendo 27% nos acidentes com vítimas fatais e 33% do total pago por invalidez permanente
Fontes: Conselho Federal de Medicina (CFM) e Relatório Anual da Seguradora Líder 2020, responsável pela operação do Seguro DPVAT até o ano passado
Despesas médicas, perdas de qualidade de vida, de produtividade no trabalho, de renda, danos materiais, envolvimento de polícia ou de tribunais, entre outras consequências, entram na lista dos custos negligenciados ou difíceis de quantificar. Eles podem ser:
• Individuais ou para a família, como funeral prematuro, custos relativos à deficiência, custos não econômicos (dor, sofrimento, luto), conserto e indisponibilidade de veículos, custos advocatícios e judiciais
• Empresariais, como local de trabalho, recrutamento e reciclagem, conserto e indisponibilidade de veículos, atrasos nos deslocamentos e custos operacionais dos veículos
• Públicos ou coletivos, como reparos em vias e outras infraestruturas, administração de seguros, polícia, serviços correcionais, ambulâncias e outros atendimentos de emergência e custos de médicos legistas
Fontes: WRI Ross Center for Sustainable Cities 2018 e Global Road Safety Facility, do Banco Mundial
Uma das análises do Observatório Nacional da Segurança Viária (ONSV) mostra que dentro do compromisso da Década Mundial de Ação pela Segurança no Trânsito, firmado entre países de todo o mundo em 2011, o Brasil atingiu apenas metade da meta de redução de mortes no trânsito (fixada em 50% à época pelo governo).
Com base nos dados do Datasus, 32.655 pessoas perderam a vida em acidentes de trânsito em 2018, 25% menos do que em 2011, quando o país registrou 43.256 mortes. Com isso, o número de mortos em acidentes em 2020 não poderia ser superior a 21.628 pessoas — foram 33.530 de acordo com o Relatório da Líder (entre janeiro dezembro de 2020)Se a meta tivesse sido atingida ao longo da década, cerca de 160 mil vidas poderiam ter sido preservadas.