A participação feminina no uso da bicicleta como meio de transporte ainda é baixa na comparação à masculina, de acordo com diversos estudos feitos em diferentes regiões do País. Características como o perfil dos deslocamentos das mulheres, insegurança viária e menos tempo para realizar as viagens são alguns dos fatores mais comuns usados para tentar explicar o fato.
Um dado muito interessante, analisado no livro Bicicletas nas Cidades – Experiências de Compartilhamento, Diversidade e Tecnologia, recém-lançado pela editora Relicário Edições, diz respeito à adesão delas ao sistema de compartilhamento de bikes, com participação muito similar entre homens e mulheres: em média, elas representam mais de 40% dos usuários em quase todos os sistemas analisados, concentrados em seis Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Ceará, Espírito Santo e Bahia. O estudo levou em conta o período entre abril e outubro de 2018.
Mesmo com participação masculina superior na maioria dos casos, o número de mulheres utilizando o sistema de compartilhamento se mostra muito próximo. No caso de Porto Alegre (RS), o total de usuárias chega a superar o de homens. Os dados destoam das demais pesquisas realizadas no Brasil envolvendo contagem de ciclistas. Em São Paulo, por exemplo, uma pesquisa feita pela associação Ciclocidade em 2016 aponta que apenas 6% dos ciclistas eram mulheres, revelando uma participação bastante desigual na comparação com a dos homens.
Já o levantamento Perfil do Ciclista, feito pela Transporte Ativo e o Laboratório de Mobilidade Sustentável (Labmob), em 2018, e que leva em conta bicicletas particulares e compartilhadas, demonstrou percentuais de participação feminina um pouco maiores, mas ainda baixos na comparação com os dos homens. Em São Paulo, por exemplo, as ciclistas representavam 15,4%, enquanto os usuários do sexo masculino eram 84,5% do total.
Para entender melhor os dados e os motivos que levam as mulheres a aderirem mais a esses sistemas que o uso de bikes particulares, o Mobilidade Estadão conversou com Letícia Quintanilha, pesquisadora do Labmob, mestre em urbanismo pelo Prourb/UFRJ, especialista em desenvolvimento territorial e urbano pela Universidade Politécnica da Catalunha e uma das organizadoras do livro. Confira, a seguir.
Que fatores explicam a participação maior das mulheres nos sistemas de compartilhamento em relação às bikes particulares?
Letícia Quintanilha: Uma das hipóteses é a de que a bicicleta compartilhada oferece um nível maior de segurança e praticidade a essas usuárias. Isso porque elas não precisam se preocupar com questões como onde deixar o equipamento para menor risco de roubo, manutenção do veículo, entre outros fatores. Outro componente é o fato de que as viagens femininas, em geral, têm motivações mais diversas e podem incluir várias demandas em uma mesma viagem, como ir ao mercado no caminho do trabalho. Nesse ponto, a bike compartilhada permite que a mulher pedale em um dos trechos da viagem, podendo optar por outro modo de transporte nas outras etapas ou mesmo no retorno, o que se adaptaria melhor às suas dinâmicas e necessidades.
Esse fenômeno ocorre apenas no Brasil?
Quintanilha: Não. Em geral, os estudos que abordam a questão de gênero no uso das bicicletas compartilhadas costumam mostrar um equilíbrio maior no percentual de mulheres e homens ciclistas do que em pesquisas que tratam do uso de bikes próprias. Apesar da segurança pública ser um fator que costuma preocupar mais as mulheres brasileiras, outras hipóteses que podem explicar sua maior participação nos sistemas de compartilhamento são comuns em diferentes contextos. Essa diferença só diminui em lugares em que existe uma cultura muito forte de uso da bicicleta, como na Holanda, ou expressiva oferta de infraestrutura cicloviária de qualidade.
O que pode ser feito para incentivar ainda mais a presença feminina nesse modal?
Quintanilha: As empresas de compartilhamento percebem a importância desse público e isso pode ser notado em algumas das campanhas de marketing realizadas, sobretudo com promoções no Dia da Mulher. Mas ainda é pouco diante do potencial que as bicicletas compartilhadas representam à mobilidade feminina. A preocupação em ter registros sobre gênero nos dados de viagens é relativamente pequena. Ou seja, nem todas as operadoras estão coletando ou analisando essas informações. O ideal seria que houvesse uma melhor compreensão das demandas de deslocamento das mulheres e de como essas questões estão refletidas no uso dos sistemas para então adequar o serviço da melhor maneira, atraindo, dessa forma, mais usuárias. Além disso, há fatores que atraem as ciclistas, mas que estão fora da alçada das operadoras de bicicleta compartilhada, como a oferta de infraestrutura para garantir maior segurança viária, algo que envolve planejamento urbano e ação do Poder Público.
Na maioria dos modais, as mulheres fazem mais deslocamentos na comparação com os homens. Por que, no caso da bike, ocorre o contrário?
Quintanilha: A demanda de deslocamentos femininos costuma ter motivações mais variadas, nem sempre compatíveis com o uso da bicicleta. Na nossa cultura, o cuidado com a casa e com a família ainda está muito associado à figura da mulher – isso também se reflete na escolha do modal. Uma questão comum é a necessidade de transportar passageiros (em viagens para levar os filhos à escola, por exemplo). Essa é uma demanda mais difícil de conciliar com a bicicleta. Com isso, para muitas mulheres, a bicicleta acaba sendo utilizada somente para o lazer, diferentemente de outros modos que se adequam melhor a essas necessidades dos deslocamentos cotidianos. Uma característica dos sistemas de compartilhamento que sustentam essa hipótese é o percentual de participação feminina mais alto nas viagens registradas aos finais de semana.