Dia das Crianças: livro infantil mostra importância de uma cidade para pessoas – e não para carros

Amsterdã, na Holanda, onde o autor do livro morava: exemplo de cidade que privilegia os modos ativos de transporte. Foto: Getty Images

06/10/2023 - Tempo de leitura: 5 minutos, 34 segundos

“Pai, de quem é a rua?”, pegunta Tom, personagem principal do livro recém-lançado ‘Se essa rua fosse minha’, e filho do autor, o jornalista Peter Füssy, que responde: “A rua é de todos”. “Então, eu posso sair de bicicleta?”, questiona Tom. “Não! É muito perigoso!”, diz o pai, resposta que a maioria dos responsáveis por crianças que vivem nos grandes centros urbanos daria.

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O diálogo dá o tom da obra, que tem ilustração de Thaís Mesquita e no Brasil foi publicado pela Tudo! Editora e vendido em vários idiomas na Amazon: a dificuldade que as pessoas têm, principalmente das crianças, de usufruírem das ruas e dos espaços urbanos com segurança.

No enredo, o protagonista leva a questão até o prefeito, que, depois de muita resistência, começa a fechar as ruas para os carros aos domingos, depois também aos sábados, movimento que acaba transformando toda a cidade. E a vida das pessoas que vivem nela.

Peter Füssy e a obra: o objetivo é mostrar que as cidade podem ser diferentes. Foto: Divulgação

Inspiração

O autor conta que o livro “Se essa rua fosse minha” se tornou uma ideia fixa depois que ele e família se mudaram de Amsterdã, na Holanda, para a cidade de Porto, em Portugal. Isso foi em 2022 e seu filho, Tom, tinha 2 anos na época. “Na Holanda, todos os dias brincávamos na rua. Em frente à nossa casa não passavam carros, havia apenas uma ciclovia e uma praça. No fim de semana, íamos para todo lado de bicicleta ou usando transporte público”, explica.

A chegada na nova casa foi um baque. “Quando chegamos a Portugal, parece que voltamos no tempo. Se havia calçada livre para andar com o carrinho de criança já era muito. Sentimos que o Tom perdeu parte da liberdade porque a cidade ainda é organizada em torno dos carros, não das pessoas. E essa é a realidade para a grande maioria das crianças no mundo inteiro, inclusive no Brasil”, diz.

Transformação

O objetivo do livro, entretanto, é mostrar que essa realidade pode mudar. De acordo com ele, até mesmo Amsterdã, considerada a cidade das bikes, e da mobilidade a pé, já foi de outra maneira. “Lá também os carros quase dominaram, porém, as pessoas resistiram e limitaram o avanço dos veículos com incentivos à mobilidade ativa. É essa ideia que gostaria de passar para crianças, de que as cidades podem mudar, mas para isso precisamos conseguir imaginar como elas podem ser diferentes. Sem imaginação e participação, as cidades vão continuar iguais”, afirma Füssy.

Confira, a seguir, a conversa que tivemos com o autor.

Qual a importância para as crianças de uma cidade que valoriza a mobilidade ativa?

Uma cidade que privilegia pessoas e modos ativos de transporte é a cidade do futuro. A organização em torno dos carros deixou de ser sustentável há muito tempo e os sinais são claros: milhares de famílias que choram vítimas fatais do trânsito, horas parados em congestionamentos, poluição que agrava o aquecimento global, desconexão com a comunidade, altos níveis de estresse e obesidade. As crianças e os idosos são os mais afetados.

Por isso, retirar privilégios dos carros e investir em infraestrutura para pessoas, como calçadas, parques, áreas de lazer, bancos, e em mobilidade ativa conectada com o transporte público, significa garantir o futuro das novas gerações e melhorar a qualidade de vida para todos, inclusive para quem continuar optando por dirigir um carro particular.

Cada pessoa andando de bicicleta é um indivíduo mais saudável, menos estressado e que tira um carro das ruas. Isso sem contar as vantagens financeiras de não precisar arcar com o custo mensal de um veículo particular. Quando a organização da cidade exige dos cidadãos um automóvel particular para ter uma certa qualidade de vida, esse alto custo pressiona o orçamento das famílias e impede que elas gastem mais com educação e cultura, por exemplo. Acredito que uma cidade desenvolvida não é aquela em que todos têm condições de comprar um carro, mas aquela em que não existe a necessidade de ter um automóvel.

Quais as diferenças na mobilidade entre Holanda e Portugal?

Esses países dotaram posturas opostas nesse tema. Enquanto na Holanda, manifestações populares conseguiram resistir ao avanço das reformas urbanas para privilegiar a mobilidade com carros particulares na segunda metade do século 20, em Portugal, essas reformas ocorreram sem encontrar muita resistência, assim como no Brasil.

Em última instância, a sensação que fica é que o espaço público em Portugal (e em muitos outros países) é destinado em primeiro lugar ao uso particular, para carros particulares. E isso acaba por restringir a liberdade de quem não quer ou não pode ter um automóvel particular. Um exemplo prático é que vivi com a minha família por quase 4 anos em Amsterdã, na Holanda, nos deslocando de bicicleta, de transporte público ou a pé e tudo isso com um bebê.

Como foi a experiência de ir morar em Portugal?

Ao chegar em Portugal, tentamos fazer o mesmo que fazíamos em Amsterdã. Sabiamos que não seria igual, mas o impacto foi muito maior do que esperávamos. As calçadas (quando existem) são limitadas e pouco acessíveis, principalmente para quem transporta um carrinho de bebê, e sempre há carros estacionados em cima do calçamento.

Enquanto em Amsterdã esperávamos por um ônibus ou bonde de 5 a 10 minutos, no máximo, na cidade do Porto chegamos a esperar 30 minutos. A infraestrutura ciclável é bastante reduzida em Portugal. Tudo isso acaba empurrando as pessoas para o carro. E foi isso que aconteceu: para ter a mesma qualidade de vida, nos vimos obrigados a contrair um financiamento para ter um automóvel, mesmo não querendo.

A forma como a mobilidade é organizada impacta diretamente na liberdade das pessoas. Mas todas as cidades podem mudar, basta ver exemplos de Paris, Londres e algumas localidades nos Estados Unidos. E é isso que desejo que as crianças levem do livro “Se essa rua fosse minha”: as cidades são estruturas vivas e precisamos de outros imaginários para criar formas mais humanas de organização da mobilidade.   

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