Eu sei, você já deve estar por aqui com o infindável debate sobre o papel do Estado versus o mercado livre na promoção do crescimento econômico. De um lado, os defensores ferrenhos do laissez-faire, prontos a brigar pela livre-iniciativa e por um governo que não atrapalhe. Do outro, estão as tropas do Estado, com “E” maiúsculo, peito estufado e dispostas a nos defender da ganância sem-fim do mercado.
É, eu entendo. Às vezes, cansa. É um debate que nunca acaba – mas, por isso mesmo, muito necessário. Para a mobilidade elétrica, não poderia ser diferente.
Vamos partir da necessidade de fazer a tal transição para a “economia verde”, aquela que não se baseia na ilusão de um moto-perpétuo de recursos naturais. Enfim, que tem um pouco mais de juízo na cabeça.
O porquê, acho que também já sabemos: para além do motivo mais óbvio – o combate às mudanças climáticas –, essa transição é crucial para a sobrevivência econômica e o desenvolvimento social.
Como parte da solução, a mobilidade elétrica emerge como imperativo. A eletrificação dos transportes tem o potencial de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, combater a poluição do ar, reduzir a dependência de combustíveis fósseis, dinamizar economias e promover o bem-estar social.
Vamos começar do início: em nenhum lugar do mundo, o mercado da mobilidade elétrica se gerou espontaneamente. Além disso, em canto algum, a caneta do governo bastou para criar um ambiente saudável para que um mercado se desenvolvesse. Para as coisas arrancarem, precisamos de uma combinação de um bom empurrão da mão (bem) visível do governo e da mão (não tão) invisível do mercado. E é o peso dessas mãos que deve mudar conforme cada caso. Vamos a alguns exemplos.
Um dos métodos mais eficazes para estimular a adoção de veículos elétricos é por meio de contrapartidas financeiras para os consumidores. A Alemanha implementou incentivos como o Umweltbonus, um subsídio direto para compradores de veículos elétricos. A Noruega também lançou mão de benefícios fiscais para isenção do imposto sobre valor agregado e de pedágios. A França, por sua vez, investiu na melhoria de sua rede pública de recarga, com foco especial em rodovias e estradas, por meio de iniciativas como o programa Corridor Charging. Já a Holanda introduziu vantagens fiscais para empresas que fornecem carros elétricos para seus funcionários.
Esses são alguns dos casos em que o Estado entra com “E” maiúsculo para dar aquele empurrãozinho inicial para que, depois, as forças do mercado comecem a agir de forma mais eficaz e sustentável.
Algumas vezes, a mão do poder público pode pesar um pouco mais. Foi o que aconteceu quando a União Europeia impôs padrões de emissões cada vez mais rigorosos aos fabricantes, incentivando a produção de veículos elétricos. Ou quando a Bélgica adotou uma abordagem proativa ao eletrificar frotas de veículos do governo.
Outros exemplos dessas “imposições para o bem” são evidentes em várias cidades europeias, incluindo Londres, no Reino Unido, que introduziu Zonas de Baixa Emissão (LEZs). Essas áreas restringem o acesso a veículos que não atendem a rigorosos padrões de emissões. Ao criar essas zonas, as cidades incentivam a adoção de eletrificados e reduzem a poluição em áreas urbanas.
A lista é longa, mas acho que o recado está dado. Trata-se de o Estado cumprindo sua obrigação de criar as condições para que o mercado aja – e de garantir que, ao agir, considere o bem-estar do público.
O avanço da Europa é evidente, mas não significa que o Brasil esteja parado. Progressos notáveis têm sido feitos por meio de iniciativas como o programa Rota 2030, que fornece incentivos fiscais para que fabricantes produzam veículos mais eficientes, em termos de consumo de combustível, e ecologicamente corretos.
Já vemos ônibus elétricos em algumas cidades embora ainda não tantos quanto precisamos –, e a infraestrutura de recarga cresce a olhos vistos. No Rio de Janeiro, um distrito de baixa emissão já começa a tomar corpo.
Isso é para mostrar que não só sabemos o que fazer, mas que podemos fazê-lo, e o estamos agindo. É para sentir orgulho, sim, mas a verdade é que ainda nos faltam direcionamentos estratégicos e políticas públicas que permitam que nossos esforços ganhem escala e sustentabilidade. Para isso, é necessário envolver a sociedade em um amplo debate. Assim, podemos descobrir como combinar o incentivo do Estado às regras do mercado livre para que a mobilidade elétrica atenda aos nossos anseios.
Só isso já é um grande ganho, mas não é o bastante: são necessários ainda mais articulação e diálogo para que o debate qualificado se traduza em políticas concretas. Aí, sim, a coisa começa a andar. Sustentavelmente.
* Ex-diretor da Plataforma Nacional de Mobilidade Elétrica (PNME)