O engenheiro industrial Oswaldo Ramos é um dos mais experientes executivos de alto escalão do setor de veículos do Brasil. Ele ingressou na Autolatina, grupo formado pela união da Ford e da Volkswagen no Brasil e Argentina. Com o fim da parceria, em 1996, participou do desenvolvimento dos novos produtos da norte-americana, onde permaneceu até 2019. Chegou ao posto de diretor de vendas, marketing e serviços. Seguiu para a Peugeot e, depois, para a plataforma eletrônica TruckPad, de onde saiu para encarar um desafio e tanto. Por chamada de vídeo, o executivo contou ao Estadão detalhes dos planos para implementar no Brasil a Great Wall Motors, empresa chinesa que comprou a fábrica de automóveis da Mercedes-Benz em Itirapina, no interior de São Paulo.
Eu acompanho o namoro da GWM com o Brasil há mais de uma década. Como foi o processo até a marca, de fato, chegar ao País?
Oswaldo Ramos: Não é coincidência. A GWM analisa o mercado brasileiro há 12 anos. Isso faz parte dos planos de expansão global e a empresa esperava pelo melhor momento. O Brasil é o 7º, 8º maior mercado do mundo. Há uma infraestrutura grande e consumidores apaixonados. Assim como concessionárias, mídia especializada, bancos, locadoras… Quando esse mercado estava crescendo, era muito caro entrar no País. Em 2021, apesar da falta de carros, houve o fechamento de fábricas e muita gente perdeu o emprego.
A tomada de decisão foi estratégica, uma vez que há plantas, profissionais e toda a infraestrutura disponível, assim como rede de pontos de venda e pós-venda. O primeiro ponto é: existe esse espaço de infraestrutura no Brasil, faltou carro ano passado. Além disso, hoje não só os carros da GWM estão maduros como são produtos de qualidade superior. Estamos falando de uma empresa jovem e que disputa o segmento de SUVs, enfrentando uma Volkswagen, por exemplo. Há 50 marcas chinesas, mas a GWN é a única que conseguiu bater Toyota e Volkswagen.
Há uma revolução acontecendo lá fora, que incluir eletrificação e conectividade e está andando a passos largos, No Brasil, a oferta de carros híbridos e híbridos plug-in ainda é limitada às marcas Premium. Assim como os itens de direção assistida estão apenas em versões de topo de linha. Assim, há falta de oferta de tecnologia. A aposta da GWM é trazer produtos com esse nível de tecnologia ao Brasil.
O brasileiro entende que produtos de marcas chinesas têm qualidade?
Ramos: O brasileiro é aberto às novas marcas que trazem novas tecnologias. Ele é o consumidor menos fiel à marca tradicional no mundo, porque ele tem uma extrema carência. Ele também tem desconfiança das marcas tradicionais, que não oferecem as soluções que ele deseja. Você pode fazer um carro europeu de entrada, mais barato, ou mesmo um americano ou asiático que não tenham equipamentos. Ou pode trazer um carro de topo.
Então, o que importa é o produto, não a origem dele. Começar com uma fábrica (no Brasil) mostra que a GWM veio para ficar, não para testar o mercado. Ainda estamos construindo a rede de concessionários. Eles estão sendo selecionados com base na qualidade do serviço de pós-vendas. Temos de entregar um produto de qualidade e um serviço superior que não frustre a expectativa do cliente.
Como será a presença da marca no Brasil?
Ramos: Vamos começar com 100% de cobertura nacional. Temos candidatos (a concessionários) em todos Estados brasileiros. Estamos escolhendo 30 grupos que vão representar a marca. Vamos ter um grupo responsável pela marca em cada Estado. Eles vão lançar a marca, montar os pontos de venda e cuidar da garantia e do pós-vendas. São Paulo é exceção, porque precisa de cinco, sete grupos para dar cobertura. Mas cada um vai atuar em uma região do Estado. Esses 30 grupos têm até o fim de 2022 para inaugurar pontos de vendas e de pós-vendas em 100% das capitais de todos os Estados. Todos têm capacidade de fazer essa interiorização de forma rápida. Somos uma marca de SUV e picapes.
E só é possível lançar picapes com uma rede madura. Então, temos um plano de aceleração para a instalação da rede até o segundo semestre de 2023, quando teremos 133 pontos de venda e pós-venda em 112 municípios do País. Em média, são cinco adesões de grupos por região, seja de investidores ou parceiros. Em um ano e meio, pretendemos estar nas capitais e principais regiões do País. No Paraná, por exemplo, além de Curitiba, temos de estar em Londrina, Maringá e Cascavel, entre outras.
O fato de a GWM atuar com SUVs e picapes, que são veículos de alto valor agregado, ajuda a atrair concessionários?
Ramos: Quando você fala com um investidor que vai trazer SUV e picape, é a sobrevivência. Os outros segmentos vêm caindo rapidamente. SUV e picapes são um pouco mais caros, mas, depois, vão ter muito mais mercado de seminovos. O consumidor que não puder comprar um eletrificado 0-km poderá comprar um seminovo daqui a dois anos. Ou seja, não estamos pensando só no business do novo, mas no sistema inteiro. Essa é a tendência também na cabeça do consumidor de SUV e picapes, inclusive com oferta de eletrificação.
Serão produtos híbridos ou 100% elétricos?
Ramos: A GWM tem três linhas de produtos. Ou seja, a Haval, de SUVs mais urbanos, a Tank, de SUVs off-road, e a Poer, de picapes. Para todas há as opções híbrida tradicional e plug-in. Temos ainda a Ora, marca de carros 100% elétricos a bateria, que virá num segundo momento. Esse é um mercado mais restrito por falta de infraestrutura no Brasil.
A GWM trará a transição, que é o carro híbrido que a gente viu na história da Europa e EUA. Ou seja, primeiro o híbrido plug-in, para dar início à expansão da rede de recarga. Depois, com a infraestrutura a pessoa migra para o elétrico. Essa é uma janela de oportunidade que a GWM viu no Brasil. Várias montadoras estão anunciando o fim do motor a combustão. No Brasil, temos a tecnologia certa para ser oferecidas agora.
A aceleração da digitalização contribuiu para a vinda da GWM?
Ramos: Vimos um espaço não preenchido no mercado brasileiro. A demanda por novas tecnologias é absurda. O carro é a quarta tela. O mundo começou com a televisão, depois foi para o computador pessoal e, depois, para os celulares. Agora, é a vez da tela do automóvel, da tela da interação. As pessoas ainda não sabem o que fazer com o multimídia do carro. Para pedir hambúrguer há o celular.
Por exemplo, lá fora há o reconhecimento facial. Quando você entra no carro, está tudo funcional. Ou seja, ao reconhecer seu rosto, banco, volante e espelhos já vão para a posição que atende você. Se duas pessoas dirigem o carro, há duas memórias. O celular que vai ser conectado é o do motorista. Isso é uma evolução pesada em termos de software. Ou seja, sai de cena aquele discurso de quem tem o melhor motor e transmissão. Além disso, o elétrico é mais simples e prazeroso de dirigir. E o Brasil está engatinhando nisso.
Estamos desenvolvendo um app para o mercado brasileiro, que é um dos maiores do mundo em consumo digital. A interação do brasileiro com as mídias sociais é enorme. Então, o ambiente do carro deve ser muito mais legal e engajador, como foi com o celular. Se o jovem está perdendo o interesse pelo carro, é porque estamos fazendo carros tradicionais. Vemos uma grande escala de crescimento no Brasil em relação à nova energia, conectividade e direção semiautônoma.
A GWM vai oferecer outros serviços agregados ao carro?
Ramos: A quarta tela é exatamente isso. Ou seja, é onde você faz shopping. O carro passa a ser uma grande fonte de dados. Há também a tecnologia over the air, que normalmente só existe nos carros elétricos que faz a atualização do módulo que gerencia o carro elétrico, nós temos o primeiro carro plugin híbrido do mundo que tem atualização pelo ar que é o over the air, que existe em carros elétricos e permite, por exemplo, vender um software que adicione funções que o modelo não tinha.
O hardware não é mais um fator de decisão de compra, e sim o software. E isso é feito de modo remoto, sem que seja preciso ir a uma concessionária. Dá para oferecer seguro, por exemplo, que vai cobrar conforme variáveis de geolocalização, tipo de uso, modo como o motorista dirige, etc.
Como a GWM está lidando com a falta de peças, sobretudo semicondutores?
Ramos: Temos duas vantagens em relação à maioria do mercado. A GWM é verticalizada, de capital aberto e com várias subsidiárias, como uma fábrica de baterias. Pode faltar matéria-prima e o condutor, que a gente vai começar a produzir. Na maioria das vezes, o Brasil é a última prioridade da marca. Seja por causa da rentabilidade ou do navio que não está disponível. A Europa e os EUA precisam bater as meta de emissões. Então, eles priorizam o mercado deles. Com a GWM é o oposto. A matriz está em um mercado dez vezes maior que o nosso.
O Brasil é mais importante fora da matriz, porque é o primeiro mercado “top 10” fora da China. Somos um verdadeiro hub para a GWM testar uma série de coisas para entrar no mundo ocidental. É muito mais do que vender carros no Brasil. É um projeto de globalização de uma empresa que é a sétima do mundo em bolsa em valor agregado. É lógico que ainda haja algumas restrições, mas a atenção que o Brasil recebe da matriz é incrível. O País é protagonista em uma operação que tem capacidade de produção muito maior do que o volume que a gente precisa para ingressar nesse mercado.
Vivemos um momento de alta de custos e inflação no mundo todo. Qual é a estratégia da GWM para lidar com isso?
Ramos: A estratégia é de longo prazo. Para os executivos brasileiros, a inflação não mete medo. A única coisa que vou dizer é que não sei qual será o preço do carro, porque o frete e o custo mudam a toda hora. Seja como for, ninguém compra uma fábrica para iniciar a produção no último trimestre de 2022 se a visão for de curto prazo. Vamos começar do zero. Ou seja, tudo que gente ganhar de participação de mercado será volume adicional. E o Brasil nunca deixa de ser “top 10” mundial. Os juros podem subir e a inflação estar pressionando preços.
O Brasil vai continuar sendo ”top 10”. Sobre preços, frete, custos, vamos ter de seguir o mercado, que é quem manda. Não tem milagre. O que explico para os estrangeiros é para esquecer os números de futuro. Tem de pegar os números de hoje e testar se o modelo funciona para ver se vai crescer e dar lucro. O mercado deve fechar com 2,5 milhões (de unidades). Vai subir para 3 milhões? Se sim, é lucro. Pode ser que caia, mas não vai cair em 1 milhão de carros.
A ordem de grandeza é essa. Por isso estamos investindo na capacidade da fábrica. Estamos olhando para cinco anos na frente. O plano é realista. O que não pode é planejar com número apertado. Se fizer isso e variar um pouco, você entra no vermelho e quebra. Essa talvez tenha sido a grande falha de alguns investimentos feitos no Brasil. O ufanismo para vender planos custa caro depois.
Foi preciso adaptar os carros ao gosto do braseiro?
Ramos: Fizemos algumas clínicas virtuais (testes de produto com consumidores). O interessante é que os produtos da última plataforma da GWM casa muito com o mercado brasileiro. Por exemplo, a plataforma tem tamanho ideal para o Brasil, há tecnologia híbrida plug-in e carroceria com design moderno. Mas há vários inputs a fazer e, por isso, ainda não mostramos nenhum carro. Não vamos lançar os carros atuais. Serão modelos da próxima geração. Então, não adianta trazer um monte de cor, por exemplo. Com o preto a gente não vai errar.
O brasileiro tem um estilo mais europeu na direção. E, apesar de as ruas serem extremamente esburacadas, ele gosta de roda grande e pneu de perfil baixo. O engenheiro vai dizer para não trazer isso, mas é isso que vende. Então, temos de achar um pneu mais robusto que aguente. Outra coisa: o brasileiro gosta que o carro responda à mais leve pisada no pedal do acelerador. Então, não adianta regular o carro para que o consumo seja baixo e o acelerador não responder. A suspensão é um desafio. Todos esses pontos estão sendo considerados. Os carros vão chegar com todos esses inputs.
Como convencer o pessoal da China a fazer esses ajustes?
Ramos: Está sendo um grande prazer. Trabalhei na escola americana e europeia. Os EUA acham que são bons para o mundo. A Europa pensa que tem o top, o refino do produto. A GWM é orientada para o negócio. Eles são ávidos para conhecer e ouvir o mercado. Porque a China é um mercado novo, com um monte de marca estrangeira. Nem todas foram bem porque, entre os principais erros, foi levar produtos americanos inadequados ao mercado chinês. Então, não tem discussão.
Todos são contratados para vender e colocar o produto no mercado. Eles trazem o que têm de tecnologia e querem escutar o brasileiro para saber quais soluções servem para o País. Porque algumas não agregam valor nenhum. A GWM é líder global no desenvolvimento de célula a hidrogênio. Então, está interessada, por exemplo, no etanol para produzir hidrogênio.
Quando os primeiros carros vão chegar?
Ramos: Os primeiros importados devem chegar no último trimestre deste ano. No segundo trimestre de 2023 começa a produção local. É aí que virão os modelos de grande volume. Vamos começar pelos carros da banda superior. A intenção é conhecer o consumidor brasileiro, trazer uma grande experiência de direção, buscar esse feedback e moldar o produto de acordo com o que o mercado quer. Vamos acelerar conforme recebemos o retorno dos clientes para chegar no segundo semestre de 2023 com bom volume de produção local.
Que mensagem o sr. mandaria ao Oswaldo que estava começando a carreira há mais de 30 anos?
Ramos: Eu diria: Aquela dúvida que você tinha, entre a paixão por automóvel e ganhar dinheiro no mercado financeiro, repete a aposta! Vai na sua paixão, aposta no mercado automotivo que vai compensar. Mesmo que você não ganhe tanto dinheiro como ganharia no mercado financeiro. O importante na vida e isso: fazer o que gosta. E essa aposta esse menino fez há 32 anos. Hoje, é a realização de um sonho de garoto poder implantar uma nova marca no Brasil. Valeu a pena, Osvaldo.