Clotilde pode pegar metrô, táxi ou carro particular. De dia, não se incomoda em andar de metrô. À noite, dependendo do horário, prefere táxi. Ela critica carros com motor a combustão. “Eles poluem e geram congestionamento. Isso não ajuda o planeta.” Não é raro ouvir comentários desse tipo vindos de ambientalistas, mas a francesa Clotilde Delbos, 54 anos, é CEO da Mobilize, unidade de negócios da Renault, criada no início deste ano, dedicada à mobilidade.
Antes desse cargo, ela ocupou, interinamente, a posição de CEO do Grupo Renault, o que dá a dimensão do peso do tema mobilidade na organização francesa. Em sua sexta visita ao Brasil (incluindo uma vigem de férias), uma das mulheres mais poderosas do setor automotivo mundial concedeu entrevista exclusiva ao caderno Mobilidade, em um inglês no qual, dificilmente, se nota algum vestígio do sotaque francês – provavelmente, resultado do período vivido na Califórnia (EUA), no começo da carreira.
Mais que simples divisão, a Mobilize tem equipe própria de engenharia e design, e já desenvolveu até mesmo uma linha de automóveis elétricos, caso do Duo. Madame Delbos aposta em modelos elétricos, compartilhamento e carregadores inteligentes, que determinam o momento ideal para iniciar a carga, dependendo do preço da energia.
Ela garante que o Kwid elétrico, a ser lançado no Brasil no ano que vem, deverá ser “um grande carro para assinatura”. No Grupo Renault desde 2012, Delbos pretende tratar a Mobilize como uma startup, o que pressupõe atitudes disruptivas e agilidade, mas garante que isso não é fácil em uma empresa de 128 anos.
Que problemas você enxerga do alto do cargo, e quais soluções propõe?
Clotilde Delbos: Concordo com você. A Mobilize é uma parte muito importante da nossa estratégia. Em janeiro, durante a apresentação do nosso plano Renaulution (mescla das palavras “Renault” e “revolution” para indicar a revolução que a marca pretende promover), anunciamos que nossa meta é que a Mobilize represente 20% do faturamento do grupo, em dez anos. Isso mostra que estamos convencidos do fato de que esse modelo de negócios vai mudar. Por diversas razões, carros estão ficando cada vez mais caros, geram poluição – a menos que sejam elétricos –, congestionamentos, perdem valor etc. etc. As pessoas pagam preço integral por um carro e usam 5% dele. Estamos convencidos de que há vários pontos para disrupções, mas não é fácil dizer às outras pessoas, mesmo da Renault: “Hey, guys, seu modelo de negócios está perto de desaparecer”. Também não é fácil criar um modelo de negócios completamente novo em uma empresa de 128 anos. O desafio é empregar uma mentalidade de startup, algo fora da caixa, mas utilizando a experiência do grupo em áreas como engenharia, software, TI etc. etc., e, ao mesmo tempo, manter independência.
Suponho que, dessa vez, você não veio ao Brasil a passeio. O que podemos esperar da Mobilize por aqui?
Delbos: Realmente, não vim a lazer. Vim para me reunir com o time da Mobilize, aqui. O Brasil foi um dos primeiros países a ter o programa, juntamente com a França. A equipe tem trabalhado em várias frentes, como compartilhamento de carros, que chamamos de Mobilize Share, voltado a empresas. Há algumas diferenças em relação ao modelo normal. A ideia é que a frota seja utilizada durante a semana para fins profissionais e, nos finais de semana, possa ser utilizada pelos funcionários em regime de carsharing. É uma forma de verificar as necessidades dos usuários, e um benefício aos colaboradores e a nós, porque testamos o serviço.
Também lançamos, no início do ano, o Renault On Demand (sistema de assinatura) para testar o “apetite” do cliente, entender quais serviços ele precisa. Em Fernando de Noronha (PE), estamos testando o conceito de smart island (ilha inteligente). A ideia é tornar uma área autossuficiente em energia, usando células fotovoltaicas, estações de recarga e veículos elétricos, para estudar como reduzir o consumo de energia e zerar as emissões, no futuro.
Então, temos várias coisas acontecendo no Brasil. O que tenho pedido ao time é pensar em tudo o que podemos fazer relacionado a carro elétrico. Sabemos que o Brasil não está na dianteira em mobilidade elétrica, mas a Renault tem dez anos de experiência e 400 mil carros elétricos vendidos na Europa. Isso significa que conhecemos as necessidades dos usuários e como podemos implementar carregadores inteligentes, como aproveitar as baterias em uma “segunda vida” (quando não servirem mais para o automóvel).
Você considera oferecer, no Brasil, um modelo de microcarro como o Duo?
Delbos: Com um bom modelo de negócios, seria um prazer. O Duo deve ser lançado, na Europa, em 2023, e penso que será uma grande oportunidade de mobilidade elétrica e também como carsharing nos centros urbanos. Eu ficaria feliz em ter o Mobilize Duo no Brasil, futuramente. O Kwid elétrico será um grande carro para assinatura.
Quando você acha que carros elétricos alcançarão altos volumes de produção e serão acessíveis?
Delbos: Em alguns anos. Nós não temos escolha. Em várias partes do mundo, as normas estão sendo feitas para matar o motor a combustão, porque ele não é bom para o planeta. Nós não contestamos. Em vários mercados, as vendas de elétricos estão crescendo drasticamente. Mas elas dependem de subvenção, e precisamos encontrar uma forma de redução de custos, porque os subsídios dos governos não vão durar para sempre. Os elétricos estão melhorando a tecnologia e permitindo aumento de produção. Maior produção, menos custos. Por outro lado, os carros a combustão vão ficar cada vez mais caros, porque eles precisarão de mais tecnologia para cumprir leis de emissão cada vez mais severas. Então, temos de trabalhar para tornar o elétrico atraente, mesmo sem subvenção.
Você acha que o automóvel como meio de transporte individual irá perder espaço?
Delbos: Depende. Se você fala em centros urbanos, acho que sim. Pegando o exemplo de Paris, a prefeita pretende começar banindo carros com motor a combustão. Se puder, ela gostaria de banir todos os carros, em algumas áreas. Então, nossa tarefa é propor uma solução. Talvez não banir completamente, mas oferecer compartilhamento de elétricos. Nos centros das cidades será cada vez mais complicado ir com carro particular. Não há lugar para parar. E, quando há, é caro. Agora, se você fala de áreas mais periféricas, rurais ou cidades menores, o uso de veículos particulares ainda será predominante por vários anos. Porque, se você não tem um bom sistema de transporte público, é complicado. Então, podemos tentar desenvolver, junto com as autoridades, algum tipo de compartilhamento, alguma forma de mobilidade “verde”, um meio-termo entre carro pessoal e transporte público.
Quando dirige, que carro você usa?
Delbos: Nós temos um Zoe, em casa. É engraçado porque, na primeira vez em que peguei o Zoe, meu marido falou: “Eu não gosto de carro elétrico; prefiro o de verdade” (ela diz isso engrossando a voz e fazendo aspas com os dedos ao pronunciar “carro de verdade”). Agora, meu marido e meu filho brigam para usá-lo.