‘Tarifa no transporte público tem forte impacto social’ diz especialista em mobilidade


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O aumento das tarifas do transporte público em várias cidades do Brasil no início de janeiro reacendeu o debate público sobre como o reajuste do preço da condução impacta o direito de ir e vir da população, sobretudo as pessoas de baixa renda. O Mobilidade Estadão analisou duas cidades da região metropolitana de São Paulo com tarifas muito distintas. 

Em Poá, região do Alto Tietê, por exemplo, a ex-prefeita Márcia Bin (UB), em agosto de 2024, decidiu aumentar a passagem para R$ 6,30. O reajuste foi de 18,87%, índice superior à inflação do ano passado, que foi 4,83%. Esse valor da passagem de ônibus faz com seja a tarifa mais cara entre todas as cidades do Estado de São Paulo. Em Poá, o sistema de transporte público é administrado por uma empresa privada que oferece apenas quatro linhas municipais de ônibus para 103 mil habitantes. 

Por outro lado, a cidade de Santo André cobra, desde 6 de janeiro, o valor de R$ 5,90. O reajuste da tarifa foi de 3,51% – R$ 0,40 a menos do que a cidade de Poá. Em Santo André há 49 linhas municipais para 748 mil habitantes.

Embora as diferenças sejam distintas, a pesquisa sobre mobilidade urbana da Rede Nossa São Paulo do ano passado afirma que cerca de quatro em cada dez pessoas deixam de visitar amigos ou familiares e um terço deixa de realizar atividades de lazer devido ao custo elevado da tarifa.

Por isso, o Mobilidade Estadão conversou com Rafael Calabria para entender melhor como o aumento das tarifas reflete socialmente a mobilidade das pessoas. Calabria é graduado em Geografia e especializado em Gestão de Cidades pela USP. Foi coordenador de Mobilidade Urbana do Idec e já atuou com mobilidade pela Cidadeapé e Ciclocidade. Também foi membro do Fórum Consultivo de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades.

Calabria: “A má gestão, a falta de dados e a dependência da tarifa que a torna também cara. Temos que achar fontes de financiamento transparentes e públicas para pagar esse tanto”. Foto: Arquivo Pessoal

Mobilidade: Observamos uma variação significativa nos reajustes tarifários entre os municípios da região metropolitana, como o aumento em Santo André (de R$ 5,70 para R$ 5,90) comparado a Poá (de R$ 5,30 para R$ 6,30). Quais fatores principais justificam essas diferenças percentuais tão distintas?

Rafael Calabria: Um problema central que tem é que o setor de transporte, os governos e as prefeituras não enxergam o impacto social que a tarifa tem do transporte público tem. Existe uma, vou até chamar de crença, que o setor não acreditava que a tarifa impactava a demanda. Não se tornaria uma barreira de acesso ao transporte pois, apesar da tarifa, os usuários conseguiriam pagar e continuar usando porque o valor é baixo perto do valor unitário, digamos assim.

Só que os passageiros precisam usar todos os dias do mês. O valor chega a R$ 200, R$ 300 reais por mês em gastos com transporte. Eu até discordo quando a gente fica focando nos centavos. O aumento de São Paulo, por exemplo, foi de 60 centavos. Se você multiplicar por 44 viagens por mês dá mais de R$ 30. É um almoço por mês que a pessoa perde só em razão do umento de tarifa de ônbius. O de Poá foi de R$ 1 real, então dá R$ 44 reais. Quase dois almoços populares. Então, é um impacto grande. E isso já está provado que impacta a remuneração de quem usa o transporte público.

Mas o setor ainda é conservador. Então, esse erro, eu diria, que é a base do setor. Da visão que embasa esses aumentos. Então, todo discurso é equivocado de achar que a tarifa é a base do custeio do sistema, o que já está provado que não funciona. E além de tudo, essa discrepância entre as cidades, aumento de R$ 1,00, de R$ 0,20, tem na base um segundo problema que eu acho importante destacar que é o que se chama de “caixa preta” das contas mal feitas de transporte e que é o problema da conta.

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Mobilidade: Como você disse que o custeio do sistema é ineficiente, como isso impactaria a qualidade, a tarifa e transparência do serviço?
Calabria: O que eu tenho destacado muito e é o ponto mais grave do que precisa mudar é a questão de basear a conta no passageiro transportado, o que gera um monte de extorsão. Porque o passageiro não é o custo do empresário, o custo do empresário é veículo, é pneu, é diesel, é o salário dos trabalhadores, isso é o custo do sistema.

Geram muitas distorções até de qualidade no sistema e não cobrem o custo real porque o custo real do empresário é o custo real dele que não muda muito de mês para mês, com exceção do preço do diesel. Por isso, a diferença entre as cidades pode ser por este fator. Uma cidade que perdeu mais passageiro, por exemplo, pode precisar de mais dinheiro sendo que o custo dela é igual ao da outra.

Então, é todo um equilíbrio que tem que ser feito, não só do custo do sistema, mas de quanto perdeu passageiro versus quanto a prefeitura cortou, ou seja, essa forma de remuneração é uma fórmula toda equivocada. Gera problemas de qualidade, de lotação e de demora, além de tornar a conta mais indireta, porque uma coisa é você saber que aumentou o diesel, então tem que aumentar a tarifa ou aumentar o subsídio mas aumentou o custo, como você faz com o SUS, com a educação com outros setores.

No caso do passageiro transportado você faz a conta e depois multiplica pelo passageiro, cria a tal da tarifa técnica e depois multiplica. Então é uma conta toda indireta, que fica mais difícil de fiscalizar, da população saber o que está pagando.

Então é uma conta toda equivocada, errada, complicada à toa e ruim porque gera má qualidade e torna mais difícil você poder comparar. Por que que o Poá aumentou mais do que Santo André? Então gera uma bagunça de controle e fica criando desculpas enquanto na verdade é uma conta muito mal feita.

Mobilidade: Além da variação nos valores, há diferenças na qualidade e abrangência dos serviços de transporte público oferecidos em cidades como Santo André e Poá? Como esses fatores se relacionam com as tarifas praticadas?

Calabria: Eu acredito que exista. A gente não tem muito dado, mas existe muita diferença de governança, de tipo de organização. Tem prefeituras que possuem um órgão de governo que nem a SPTrans, aqui em São Paulo, em São Bernardo que tem a BR7 Mobilidade, tem outras que não têm. Então varia muito a forma de gestão. 

Eu acredito que tenha diferenças, mas, pelo fato, a gente sabe que, na verdade, não tem nenhuma que é boa. Existe ali uma má qualidade padrão. Mas deve ter algumas diferenças de cobertura entre umas e outras, até pela característica da cidade. Suzano tem uma área rural muito grande, São Caetano não, Guarulhos também não tanto. 

Mas falta muito dado para debater isso. Tanto dentro da cidade, quanto comparando outras cidades, porque não há dados de cobertura de frequência por região. Mesmo que a SPTrans tenha muitos dados, eles divulgam o básico. As linhas são essas, os horários são esses. Meio que só o básico. Mas não tem nenhuma análise de cobertura.

E o setor não tem nem cultura de fazer essa análise de cobertura por bairro, bairro central, bairro periférico e tal. Então, não temos muito dado. Mas isso está muito ligado também à forma como é feita, como depende da tarifa, se um bairro não tiver muito passageiro não vou querer atender aquele bairro, independentemente da necessidade daquele bairro ou não. Não se analisa a necessidade do bairro. Se analisa assim: “Lá não tem demanda para ter uma linha, então não vale a pena cobrir.”

Então a má gestão, a falta de dados e a dependência da tarifa que a torna também cara. O que seria a solução? A gente pode debater. Bairro tal tem que ter tal cobertura e isso vai custar tanto. Temos que achar fontes de financiamento transparentes e públicas para pagar esse tanto.

A tarifa pode vir a cobrir uma parte ou não, mas falta todo um debate anterior. Então o problema é todo integrado. E na verdade, falta tudo. Quem usa sabe: o setor é muito precarizado. É muito ruim.

Mobilidade: Como a estrutura de custos do transporte público (combustível, manutenção, salários, etc.) impacta a definição das tarifas em cada município? Existem particularidades nesses custos que explicam as diferenças observadas?

Calabria: O custo impacta pelo formato atual. Como funciona este formato: no começo do contrato você calcula o custo do sistema do transporte público de uma cidade que vai custar, por exemplo, 100 milhões. Depois você vê quantos passageiros são transportados e divide por esse valor, que gera um valor perto da tarifa que chamam de tarifa técnica.

E, ao longo do contrato, observam cada mês, semana, cada período e, dependendo da cidade, quantos passageiros transportou, multiplicando aquela tarifa que vai dar um valor. Então, se chegar mais passageiro, lotar mais os ônibus, o empresariado vai ganhar mais porque vai multiplicar mais vezes aquela tarifa dele.

Se perder passageiro vai perder receita. E o que eles pedem? Reequilíbrio, subsídio, dinheiro. Só que o que acontece: se houver mais passageiros e não melhorar a frequência, não está gastando nada demais. Gastará a mesma coisa do que estava planejado, então, vai só lucrar mais com os ônibus.

E se conseguir reduzir a frota do que estava planejado ele vai economizar dinheiro. E é o que eles fazem. Não cumprem o horário, aumentam intervalo, deixam as pessoas esperando. Quando os usuários embarcarem no ônibus tudo de uma vez só, ele vai ganhar a mesma coisa e vai lucrar. Então essa fórmula é a raiz do problema da qualidade do transporte e da tarifa cara. 

“Se houver mais passageiros e não melhorar a frequência, não está gastando nada demais. Gastará a mesma coisa do que estava planejado.”

Rafael Calabria

“E se conseguir reduzir a frota do que estava planejado ele vai economizar dinheiro. Quando os usuários embarcarem no ônibus tudo de uma vez só, ele vai ganhar a mesma coisa e vai lucrar. Então essa fórmula é a raiz do problema da qualidade do transporte e da tarifa cara.”

Mobilidade: Qual o impacto desses aumentos tarifários no orçamento das famílias de baixa renda?

Calabria: É bem grave. O valor que costuma se usar são 22 dias úteis, então são 44 viagens por mês, então chega aí, 30, 40 reais de impacto, o que pode variar para cada cidade. E isso faz com que as pessoas usem menos o transporte. Tem um dado muito raro da Rede Nossa São Paulo que em 2019, na capital paulista, historicamente, 40% das pessoas falaram que deixavam alguma vez ou com frequência de ir ao SUS por causa da tarifa. E o SUS é gratuito. Mas o acesso ao SUS é R$5,00, R$6,90, dependendo da cidade. E com a tarifa congelada de 2019 para cá, estava caindo esse número.

“Em 2019, na capital paulista, 40% das pessoas falaram que deixavam alguma vez ou com frequência de ir ao SUS por causa da tarifa. E o SUS é gratuito.”

Rafael Calabria

Além da perda histórica de passageiros, já faz cerca de15 anos que tem perdido passageiros constantemente, e as tarifas só vêm aumentando.

Um bom exemplo vem do Rio de Janeiro, onde o prefeito Eduardo Paes (PSD) aprovou a Lei Complementar n° 237 de 2021, na qual todo aumento de tarifa precisaria ter o estudo de impacto social. Só o Rio de Janeiro tem isso, por enquanto. E agora o Rio tem uma lei bastante moderna que vai ter que criar até esse estudo que não tem nem parâmetros.

O setor já percebeu muito isso e, infelizmente, alguns técnicos da SPTrans e da Prefeitura de São Paulo não consideram, ignoram e menosprezam esse impacto.

Mobilidade: Existem políticas públicas sendo implementadas ou planejadas para mitigar o impacto desses aumentos na população mais vulnerável, como subsídios ou programas de tarifa social? O que poderia ser feito nesse sentido?

Calabria: Precisaria identificar outras fontes de receitas, subsídios, enfim. Tem o debate de mudar o vale transporte, usar a zona azul, a outorga dos eixos de transporte. Tem vários debates sobre como administrar os recursos públicos para poder dividir essa conta e tirar o peso da tarifa.

E aí, pagando de outra forma, a prefeitura pode ampliar gratuidades, criar tarifa social, criar linhas de tarifa zero. E ela vai poder buscar formas de, até, baixar a tarifa total, a tarifa média, como um todo. Então precisamos fazer isso caminhando para a tarifa zero porque vai garantir o transporte como um direito.

Isso é uma necessidade social, humanitária, diria assim. Mas poucos governantes têm tido essa preocupação e essa atenção.

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