Trem de Prata, o vagão de luxo que ligava São Paulo e Rio de Janeiro


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O mais luxuoso expresso sobre trilhos do País. Era assim que a reportagem do Estadão descrevia o Trem de Prata, serviço expresso que ligava as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, um mês após sua inauguração. Com jantar de cardápio requintado, vagão para drinques que varava a madrugada, cabines dormitório exclusivas, com banheiro e chuveiro, e café da manhã – tudo incluso no preço da passagem –, o percurso de 9 horas entre era descrito como uma “cena de filme”.

A inauguração do Trem de Prata aconteceu no dia 8 de dezembro de 1994. O serviço retomava a operação do antigo Trem Santa Cruz, que fez o trajeto da década de 1959 até 1991. O antigo trem era, aliás, preferido de artistas famosos, como Vinícius de Moraes, Elizete Cardoso e Ciro Monteiro. E foi apelidado de “avião dos covardes”, por ser opção para quem tinha pavor à ponte aérea. A passagem, no antigo ramal, custava Cr$ 19,90, “bem barata” segundo relatos da época. Isso, porém, não impediu a desativação da linha em 1991 quando a taxa de ocupação média ficou inferior a 30%.

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Trem de Prata, ‘glamour’ sobre trilhos

Foi, então, que um consórcio formado pela Rede Ferroviária Federal, Hotel Portobello e Útil-União Transportes Interestadual S.A. decidiu investir US$ 4 milhões para remodelar os vagões, decorar os trens e retomar, em novo padrão, o antigo trecho. Uma das mudanças era o fim dos assentos – como nos ônibus e aviões atuais –, substituído por cabines exclusivas. Outra era o serviço de bordo, que imitava hotéis de alto padrão e os famosos trens europeus. E, como os tempos haviam mudado, o novo trem recebeu, além disso, vidros à prova de balas e tecnologias para comunicação entre os vagões em casos de emergência.

Registro em filme do trem, com créditos da Confederação Nacional do Transporte – CNT

Cada um dos sete vagões-leito tinha 10 cabines para dormitório, exclusivas para cada cliente ou família. Havia cabines duplas, individuais e suítes, com camas king-size, videocassete e frigobar. Nos banheiros, água quente e fria para banho. Os preços na inauguração iam de R$ 135 a R$ 260 em valores da época. De acordo com a calculadora de correção de valores do Banco Central do Brasil, a passagem mais cara era equivalente a R$ 1.893,12 em valores atuais. Crianças de até 3 anos não pagavam, e para as de 3 a 12 anos, o bilhete custava R$ 45 reais.

O trem saia às 20h30. O embarque era na Estação Barra Funda, em São Paulo, saindo nas segundas, quartas e sextas-feiras. No Rio de Janeiro, saía da Estação Leopoldina, na zona central, nas terças, quintas-feiras e domingos. O horário de chegada era, assim, uma reclamação dos passageiros, relatadas nas páginas do Estadão. Às 5h30, as duas cidades estavam dormindo quando os passageiros tinham que acordar da sua viagem de cinema.

Balançou até cair

Nem tudo, portanto, eram flores. Há relatos de que, na primeira viagem, alguns vagões ainda não estavam prontos e foram terminados com o trem embarcado e passageiros esperando no espaço coletivo. Além disso, o telefone não funcionava direito na maior parte do trajeto. O balanço do trem também era um problema, uma vez que os trilhos eram antigos e não garantiam estabilidade aos vagões. Mas isso não impedia que vinhos fossem servidos sob auspícios de maîtres experientes e que um barman oferecesse martinis em taças de cristal até a madrugada. Ao fim, nada suficiente para estragar o clima de festa.

O garçom Eliezer de Oliveira, em entrevista ao Estadão em 1995, relatava que não era fácil. “Dificilmente conseguimos manter a postura ao caminhar pelo vagão. Parece que estamos bêbados quando andamos”, afirmou. Por isso, o atendimento do restaurante precisava de ajustes. “Ao servir o vinho, por exemplo, sou obrigado a pegar a taça da mesa, para não correr o risco de derramar”. Dadas as circunstâncias, uma ofensa perdoável aos rígidos manuais de etiqueta.

A reportagem conta que no vagão-bar havia TV, som, video-cassete e um bar com diversidade de bebidas e cigarros, para todos os gostos. Na mesa, três aperitivos de cortesia: azeitonas, amendoim e batatas. Como dizia a manchete de um suplemento do Estadão de 1995, o trem era, dessa forma, verdadeiramente uma peça de “romantismo sobre os trilhos”.

A crise do Trem de Prata

Daí para frente, porém, o “glamour” deu lugar à crise. Entre os motivos, problemas na linha férrea como o que fez descarrilhar o trem em 1996 em meio à Zona Norte do Rio – sem feridos. Em um mural de leitores do Estadão, um casal relatou que se surpreendeu com a sujeira do vagão suíte ao embarcar na viagem dos sonhos, criticou a grosseria dos garçons no restaurante e terminou a má experiência com a parada do trem em Volta Redonda em razão de uma greve, tendo que ser levados de ônibus até o final do trecho.

Em 21 de outubro de 1998, o Estadão noticia que houve uma diminuição de 40% nas viagens. O preço da ponte aérea – que levava apenas 45 minutos – havia caído, a qualidade do trem, também, e os passageiros faziam sua opção. Atrasos, cancelamentos e falhas se tornaram constantes. Só nos finais de semana, diz a notícia, a ocupação chegava perto de 100%.

Assim, em novembro daquele ano, o Trem de Prata saiu pela última vez. “Perdemos a credibilidade entre nossos clientes”, dizia o superintendente do consórcio, Jerônimo Gil. O faturamento anual esperado, de R$ 600 mil por mês, nunca chegou. E o consórcio decidiu, portanto, desativar o serviço. “Basta o serviço ferroviário melhorar um pouquinho que eu tenho certeza que o trem voltará”, afirmou o superintendente, um português de 58 anos. Isso, porém, nunca aconteceu.

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Última partida e um brinde de despedida

As últimas viagens foram feitas em clima de nostalgia antecipada, com esforço de registrar com câmeras e na memória as cenas fotogênicas do trem mais luxuosos que o Brasil já teve. O superintendente aproveitou a ocasião para dizer ao Estadão que o problema havia começado após a privatização das ferrovias compradas pela MRS Logística, que colocou trens de carga no mesmo trecho e aumentou, assim, o número de falhas dos trilhos. De uma forma ou outra, era o ponto final. Na última viagem, a composição parou dez vezes durante a viagem. Entre lágrimas de clientes fixos e dos funcionários, desolados – que foram servidos vinho na viagem de despedida, mas só dois dedos cada –, o Tem de Bala partiu para a história.