Ensino híbrido ainda reproduz dificuldades do modelo remoto

Escola Mbyá-Guarani na Aldeia do Cantagalo, em Viamão, no Rio Grade do Sul. Foto: Mariana Bampi/Nonada

20/10/2021 - Tempo de leitura: 5 minutos, 28 segundos

Marlene Angelica Bento é professora há oito anos. Faz parte da Aldeia São João do Yapura, uma das 18 da terra índigena Guarita, no noroeste do Rio Grande do Sul. Ela também é vice-diretora na Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Antônio Caximim, onde a volta às aulas tem sido gradual e no sistema híbrido. Segundo Marlene, mesmo nesse novo formato, a pandemia é um dos momentos mais desafiadores da carreira.

Muitos pais ainda não se sentiram seguros de levar seus filhos para a escola. “A gente está auxiliando as crianças com atividades remotas por enquanto. Todos salientaram que no momento em que estiverem se sentindo seguros iriam mandar seus filhos”, diz Marlene.

Sem que a Secretaria de Educação direcione um apoio específico, a professora conta que são várias as dificuldades, para além da pandemia. Uma delas é a falta de transporte público para a escola. “Um transporte de qualidade é fundamental para que esses alunos possam fazer seus estudos [presencialmente] em seu local de origem. Isso é muito importante pra nós, que somos indígenas.”

Procurada, a secretaria afirmou que não há um plano específico de retorno para as escolas indígenas, mas que foram publicadas várias portarias com orientações para as escolas que atendem no modelo híbrido de ensino, desde o ano passado. Em relação às particularidades das escolas indígenas, a Seduc afirmou, em nota, que “mantém um diálogo permanente com as comunidades para que as aulas ocorram de maneira adequada e de acordo com a realidade de cada uma das instituições de ensino”.

A professora Rosani dos Santos, 39, que atua em São Paulo, tem queixa semelhante. “Por mais que tenha uma série de dificuldades entre os alunos, não podemos esquecer de que a população indígena é desassistida em várias esferas públicas, e não é diferente neste momento”, diz.

Por mais que tenha uma série de dificuldades entre os alunos, não podemos esquecer de que a população indígena é desassistida em várias esferas públicas

Rosani dos Santos, professora em São Paulo

Dados da Secretaria de Educação de São Paulo mostram que o estado tem 6.963 indígenas Mby’a, Tupi Guarani, Kaingang, Krenak e Terena que habitam a faixa litorânea, o Vale do Ribeira, o oeste do estado e a região metropolitana. São 1.946 estudantes para 52 escolas estaduais indígenas, além dos que estudam em instituições não indígenas.

Na cidade do Rio de Janeiro, não há sequer escola específica para essa população, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Existem 325 alunos indígenas na rede pública. Faltam professores indígenas e infraestrutura para garantir o acesso dos alunos a aulas remotas. Na aldeia Araponga, em Paraty, a internet chegou em julho de 2021 e a escola reformada pela Prefeitura voltou a funcionar em setembro.

“Hoje só há duas escolas em funcionamento, que é Itaipuaçu e Mata Verde, sendo que a segunda é em um contêiner, ou seja, feita de lata. Além disso, é preciso um estudo baseado na valorização da cultura indígena”, defende o ambientalista Sergio Ricardo, membro do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas (Cedind-RJ).

Além das questões estruturais, tem a adaptação à modalidade remota. Segundo Marlene, alguns pais completaram apenas as séries iniciais e por isso não conseguem acompanhar os filhos das séries finais online. “Nós, como professores, ficamos preocupados em ajudar mais, porque nem todos têm acesso a Internet para poder acompanhar e mandar os trabalhos”, conta. “A gente vê que os brancos [não indígenas] têm condições de aprender remotamente, mas os nossos, não.” A Terra Indígena Guarita tem 16 comunidades com 11 escolas e 11 postos de saúde. “Não são todas as escolas que têm as mesmas condições. Cada comunidade tem a sua demanda e assim temos que seguir.”

Adaptação das tradições

Na Escola Abá, de Caucaia, no Ceará, a educação indígena foi moldada ao ensino remoto. A semana de festas tradicionais celebradas no Dia do Índio, por exemplo, foi toda virtual, encenada pelos próprios professores e transmitida aos alunos. O mesmo ocorreu em São Paulo. Sem apoio do poder público e tendo a educação como prioridade, nas aldeias algumas iniciativas foram pensadas.

A aprendizagem da nossa cultura não é para resgatar, e sim para relembrar sempre, para repassar para os outros que estão vindo. Para os próximos que vierem já saberem que a gente sempre está lutando

Adilio Wera Ruvixa Paraguassu, vice-diretor da E.E.I Aldeia Boa Vistaem Ubatuba

Na aldeia Bananal, Terra Indígena Peruíbe, por exemplo, as professoras montaram apostilas com atividades. e um grupo de WhatsApp para que as crianças fizessem os exercícios em casa e as mães pudessem fotografar e enviar para os professores. “Isso é feito diariamente e toda dúvida que surge eles mandam no privado ou podem mandar no grupo mesmo, compartilhando ideias e sugestões e assim a gente vem fazendo”, diz Jaciara de Souza Gomes de Menezes, vice-diretora da Escola Estadual Indígena Aldeia Bananal, no município de Peruíbe.

Na Terra Indígena Boa Vista, em Ubatuba, houve o reforço do estudo das tradições. “A gente está aproveitando para contar um pouco mais da nossa história, da nossa aldeia mesmo, do nosso povo”, afirma Adilio Wera Ruvixa Paraguassu, vice-diretor da E.E.I Aldeia Boa Vista. “A aprendizagem da nossa cultura não é para resgatar, e sim para relembrar sempre, para repassar para os outros que estão vindo. Para os próximos que vierem já saberem que a gente sempre está lutando”, emenda.

  • 78,5% das redes de ensino no Brasil tiveram problema de conexão
  • Abandono escolar é mais grave na população indígena
  • Impactos da pandemia na educação são piores entre os estudantes indígenas
  • Sem aulas, alimentação dos indígenas em idade escolar está comprometida

Esta reportagem foi produzida por meio do projeto Sala de Redação, desenvolvido pela Énois, um laboratório de comunicação que trabalha para impulsionar diversidade, representatividade e inclusão no jornalismo brasileiro. Confira as metodologias na Caixa de Ferramentas. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre jornalistas dos veículos Maré de Notícias (RJ), Nonada (RS), O Povo (CE), Expresso na Perifa (SP) e Sul21 (RS)