A corrupção é habitualmente associada ao caráter questionável do povo brasileiro, tratado pelas elites como inferior e responsável pelo próprio abandono — como se a concentração de renda não fosse um problema e a base das desigualdades. Autor de mais de 20 livros, o sociólogo, advogado, professor universitário, pesquisador e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé de Souza aponta de que forma a classe dominante produz, distribui e faz com que as populações periféricas comprem e defendam valores nocivos a si mesmas.
Em entrevista ao Expresso na Perifa, o pesquisador trata sobre sua mais recente obra, O Brasil dos Humilhados (Editora Civilização Brasileira), explica como a humilhação é parte do processo de domínio de um povo e destaca a necessidade de novas ideias para estabelecer um modelo mais justo de País.
EXPRESSO NA PERIFA: No livro O Brasil dos Humilhados você diz que as ideias em circulação são resultado da construção de uma ideologia a partir das classes dominantes e privilegiadas. Esses valores podem levar a população a defender algo que é prejudicial a si mesma?
JESSÉ SOUZA: Sim, as pessoas normalmente não percebem que a construção das ideias não é delas, isso é uma fantasia ingênua. Podemos ter ideias distintas das ideias dominantes que são hegemônicas, mas não construímos nenhuma ideia sozinhos. Os jornalistas, por exemplo, irão tirar as ideias de um tesouro que são, de 200 anos para cá, fruto de intelectuais treinados para produzir isso. Mas a gente não percebe no cotidiano.
Num primeiro aspecto, nós recebemos essa ideia da própria família. Desde o começo, incorporamos pai, mãe, escola, aprendemos, vamos sugando o mundo, que é o que uma criança faz, e vamos internalizando coisas de uma maneira inconsciente. Em um segundo aspecto, a imprensa irá bombardear as pessoas com uma visão específica.
Podemos estabelecer uma base de valores que determina a construção dessas ideias?
Sem dúvida, porque isso vai sendo trilhado por três fases: a primeira é a produção, vários intelectuais, nem sempre com a mesma ênfase, vão produzir as ideias que serão dominantes. No caso brasileiro, serão Gilberto Freyre [sociólogo que defendia a teoria da democracia racial], que Getúlio Vargas [presidente do Brasil entre 130 e 1945 e de 1951 a 1954] irá utilizar, e Sergio Buarque de Holanda [historiador e sociólogo], que apontava a teoria de padrões de colonização ibéricos, no qual a portuguesa, como é o caso do Brasil, foi menos violenta e impactante às colônias.
Depois da produção tem a seleção de ideias e aí entra a classe dominante, a elite, que não é só proprietária da indústria, da produção, mas também dos meios de comunicação, que no caso brasileiro são privados.
Por fim vem a difusão, uma seleção de como essas ideias serão defendidas para que se tornem hegemônicas e aí há dois mecanismos: uma é a universidade e as escolas. Se você pegar qualquer currículo de qualquer universidade do Brasil que fale sobre o país, terá mais de 90% de Sérgio Buarque. Isso formará toda a elite. O outro mecanismo de divulgação é a imprensa, que irá repetir esses valores, a ideia de patrimonialismo, de que a corrupção é algo cultural brasileiro, uma enorme bobagem. Essa legitimidade do que a imprensa vai publicar a partir dos interesses da elite será construída de diversas maneiras distintas e inclui representantes de outros setores da elite proprietários de outras áreas e que pagam por propaganda, por exemplo. Mas a seleção é determinada pelo poderio econômico.
Quando você culpa o povo pela própria miséria, ele não procurará quem o deixou nessa condição. A ideia de que a corrupção é uma herança, que vem de Portugal é ridícula inclusive em termos científicos. O que Portugal fazia na Idade Média não tem qualquer diferença com o que a Inglaterra e outros países faziam. O que se coloca como base é montar uma ideia de honestidade para Inglaterra e Estados Unidos, para que possamos nos identificar com eles, e uma suposta cultura da corrupção e da inconfiabilidade para o restante da população mundial. Uma divisão, em especial, que legitima o conceito de mestiços e negros pouco confiáveis e uma classe média branca de herança europeia que não irá se opor ao que Sérgio Buarque trata como conceito de homem cordial.
Outros autores como Raimundo Faoro [jurista, sociólogo, historiador, cientista político e ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil] ajudam com isso e eu discuto isso no livro, ele diz que isso vem do Estado português, aponta que em 1831 a corrupção estava em alta. Isso é uma fraude histórica, ficamos pensando em como 200 milhões de pessoas inteligentes conseguiram acreditar nisso.
A noção de bem público, que é constitutiva para a noção de corrupção em termos modernos, do particular se apropriando do bem público, só existirá após a Revolução Francesa, em 1789. Porque se não tem o conceito de soberania popular, também não terá o conceito de bem público, um bem que pertence a todos. A ideia de que o povo brasileiro é naturalmente corrupto é falsa em todos os sentidos.
A partir de um olhar periférico e não de quem define as regras, quais valores você julga os mais nocivos na formação dessa classe de humilhados?
Mais do que o valor, o mais importante é a própria imposição da humilhação. Para explorar uma pessoa, fazer com que ela seja apropriada por outra, antes de tudo, precisa humilhá-la. Sejam sociedades inteiras, classes sociais ou indivíduos, todos precisam ser humilhados para aceitarem uma situação de subordinação.
Esse é o pensamento que justifica ações como entregar a Petrobrás aos americanos, a ideia de que devemos entregar porque são honestos e aqui só há político corrupto que irá roubá-la.
Como a corrução efetivamente é associada como uma herança cultural brasileira?
A construção da ideia de povo brasileiro como inconfiável e corrupto é baseada nos afetos da terra, numa herança associada aos pobres, mulheres. Assim se busca animalizar as pessoas. Porque afeto é o que temos em comum com animais. O espírito é o que nos torna divinos e se baseia em inteligência, moralidade e padrão estético, um conceito que fica para as sociedades do Norte.
Em nossa mente, o espírito seria uma elite que irá se considerar americana, uma classe média branca que irá se considerar europeia pela origem recente e irá criminalizar quem não é classe média branca e nem elite.
[Getúlio] Vargas, com a ideia do bom mestiço, conseguiu interditar minimamente o racismo explícito através do aspecto cultural, da propaganda da importância da herança negra, do samba, da música, do talento para o futebol. Isso começou a dar um pouco de autoestima ao povo.
Sergio Buarque, então, devolve o povo brasileiro, a população pobre, mestiça e negra para a lata de lixo da história sem tocar na palavra raça, que foi interdita pelo discurso varguista, por meio do tema da corrução. Isso fere uma das dimensões ao espírito, baseado no tripé da inteligência, moralidade e estética. E fere justamente aquele que é principal, a moralidade. Basta observar que ao atacar a inteligência ou conceito estético de alguém o impacto é muito menor do que chamar de corrupto.
Na versão de Sergio Buarque, com o homem cordial, o povo pobre é transformado em alguém que é inconfiável, corrupto e que vota em corrupto. Você criminaliza o voto da maior parte da população brasileira e com a imprensa sob seu domínio, você pode gerar escândalo em um caso de corrupção como quiser. Isso permite que os afetos racistas da classe média branca possam se manifestar como se fossem uma superioridade moral, que vai dizer que os pobres não se escandalizam com a corrupção pública, mas essa classe sim. Isso fará com que se considere superior moralmente. Essas ideias permitem construir e legitimar uma concepção totalizadora que irá estruturar todas as relações.
Você acredita que a aplicação de valores que produzem desigualdade e miséria tendem a provocar uma futura ebulição?
Por mais fome que as pessoas tenham, isso não tem relação com o comportamento político delas. Os 80% da sociedade brasileira que se sente humilhada sofre com a desigualdade, não tem chance e nem acesso às benesses do mundo moderno, sabem que são explorados. Têm raiva e ressentimento, mas sem ideias que possam canalizar isso em indignação política, que é a racionalização desses sentimentos, você ficará apenas na raiva, exatamente o terreno da extrema-direita.
Sem que alguém explique o impacto do assalto pela elite financeira, os mais prejudicados acharão que o problema deles é de quem mora ao lado, do negro que ele chama de bandido, das pessoas gays que são um perigo à família.
O Max Webber [jurista e economista alemão] dizia que a necessidade do ser humano de uma compreensão do mundo é tamanha que quando você não tem nenhuma, a mais absurda passa a ser acreditada com paixão porque é a única coisa que se tem e a extrema-direita nada de braçada nisso.
Já a esquerda, que não é bem esquerda, mas algo entre a centro-esquerda e a socialdemocracia, não percebe, como Getúlio percebia, que precisa ir para um embate de ideias. Porque na concepção ingênua desse pessoal, normalmente pessoas de classe média, não há a noção de que é preciso lutar por uma narrativa e interpretação alternativa da sociedade. Precisamos de uma revolução cultural ou a sociedade não mudará a forma como se enxerga.
Procura-se descobrir porque apesar de o Brasil passar por uma crise econômica, moral, política e sanitária, o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), ainda tem um grande apoio. Onde as ideias e a forma de agir de Bolsonaro se encontram com boa parte da população brasileira?
Primeiro na questão da corrupção. Colou-se em Lula e no PT essa questão e é de uma burrice imensa deixa-se emparedar nisso por alguém como Bolsonaro, o que demonstra um déficit de assessoramento. A corrupção acontece em todo lugar, a única coisa que se pode fazer é ter órgãos de controle atentos a prevenir e fiscalizar, a partir do mandatário. Esse argumento seria facilmente rebatido, mas não é porque essa ideia de corrupção entrou na cabeça de todo mundo, da direita à esquerda, que pensa o mundo a partir dessa base.
Os brancos e ricos estão com Bolsonaro, mas esse pessoal não tem voto. O que precisa ser explicado é como ele conseguiu ativar esse ódio e racismo popular e cultural. A corrupção permite que se humilhe fingindo que não é racismo.
Bolsonaro ativa o racismo também a partir da pessoa que é branca, em São Paulo e no Sul, mas que não subiu à classe média e é visto de cima para baixo por quem está em classes superiores. Ele tem um ódio que a extrema-direita vai acoplar à ciência, à cultura, à arte. Assim se consegue mobilizar a raiva que o branco pobre do Sul e São Paulo sente em relação a uma estrutura que o humilhou, o oprime e ele não conhece as razões da opressão. Vai pegar os símbolos disso para atacar, a universidade, a ciência, a cultura, a arte que são aspectos aos quais não teve acesso.
O mesmo ocorre em relação ao evangélico, que pode ser negro e muitos são, mas aí será chamado de pobre honesto, de homem de bem. Em oposição a ele, você constrói a figura do mal, criminaliza o negro pobre que fará o papel de bandido, que muitas vezes será o cara que vende uma trouxa de maconha porque não teve nenhuma outra oportunidade. Crime é vender o patrimônio público por 1% do valor que vale. Mas como a elite constrói também o que é crime, coisa que o pobre faz, nunca ações dos ricos, isso permite que esse negro evangélico, humilhado a vida toda, se sinta superior a alguém, pelo menos. Todos esses elementos foram manipulados e mobilizados por Bolsonaro.
Considerando que a formação do pensamento vem de quem domina a sociedade, como é possível formar um grupo forte o suficiente a partir das periferias para construir um modelo de país mais justo?
As ideias têm produção, seleção e difusão e não há mudança social possível sem novas ideias. A violência jamais conseguiu mudar nada no mundo, sempre são novas ideias que estão por trás de mudanças sociais efetivas. A Revolução Francesa ocorreu porque havia filósofos extremamente influentes em clubes e discussões e lideranças populares. As ideias entraram, se não no povo como um todo, nas camadas burguesas.
Para isso precisamos de uma nova interpretação e foi o que tentei fazer em “O Brasil dos Humilhados”, porque, para mim, essa tradição hegemônica continua até hoje. Precisamos ter uma seleção dessas ideias e a difusão delas.
Precisamos de uma imprensa pública como na Inglaterra, na Alemanha, na Escandinávia. Isso não significa uma imprensa estatal, mas veículos que coloquem no ar o cara do MST [Movimento Sem Terra] e do agronegócio, o representante dos metalúrgicos e da indústria automobilística para discutir regras com base na pluralidade. Esse é um processo de aprendizado que tem de acontecer.
Serviço | “O Brasil dos humilhados – Uma denúncia de ideologia elitista” | Editora Civilização Brasileira (2022) | 248 páginas