Nas grandes cidades, é comum ver crianças e adolescentes trabalhando nas ruas, em situações diversas, seja como guardadores de carros, flanelinhas e vendedores de doces, seja fazendo malabarismo ou limpando para-brisas no trânsito. Foi exatamente essa a realidade de Maria Aparecida da Silva, uma mulher negra da periferia que, aos 8 anos, começou a trabalhar nas ruas do ABC Paulista para contribuir com a sobrevivência familiar.
“Cuidava de carros, entregava panfletos no semáforo, vendia bala e pegava resto de feira. Também ia de casa em casa pedindo comida e roupas com meus irmãos e vizinhas e depois a gente dividia a comida entre as famílias”, conta Maria. “O Dia das Crianças e o Natal eram as datas que mais recebíamos doações.”
BRASIL
1,8 milhão de crianças e adolescentes em trabalho infantil 66,1% são negras
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), publicada pelo IBGE em 2019
Mas hoje, aos 38 anos, Maria é atriz e educadora social e conta ao Expresso na Perifa como sua história contrariou as estatísticas e se transformou em fonte de inspiração para crianças e jovens atendidos na organização que a acolheu na infância.
Ela mora na comunidade do Parque São Bernardo, conhecida como Montanhão — periferia da cidade de São Bernardo do Campo, que fica na região metropolitana de São Paulo. Sua mãe era auxiliar de cozinha e doméstica, seu pai ajudante geral. Ambos são falecidos. Na memória, traz uma infância marcada pela pobreza e pela violência.
“Além de ter visto e presenciado várias cenas de violência policial, a gente vivia em um barraco que quando chovia entrava água, dava enchente que vinha até o pescoço. A gente perdeu várias vezes documentos, roupas. Nossa situação sempre foi muito precária e a batalha diária era garantir a comida no prato”, descreve.
Transformações
Não caberia à história de Maria melhor expressão do que o latim mutatis mutandis, que significa “mudando o que tem de ser mudado”. E as mudanças de sua trajetória começam justamente quando conhece o projeto social Meninos e Meninas de Rua, aos 12 anos — a ação tem quase quatro décadas, mas corre o risco de ser despejada a qualquer momento pela prefeitura.
Maria começou a participar de forma mais ativa aos 15 anos, ao lado de pessoas da periferia e das ruas com vivências semelhantes à sua. Ingressou, então, no grupo Eureca, onde aprendeu a cantar e a tocar instrumentos de percussão, a exemplo de tamborim e agogô. “Íamos apresentar o projeto através da música em várias cidades, como Campinas, Rio de Janeiro e Brasília. Depois estudei teatro e fiz parte dos núcleos de formação política para adolescentes e jovens.”
Esse envolvimento ensinou Maria sobre sua própria força. A hoje educadora social e artista traduz: “Como mulher negra, de periferia e gorda, eu sofria muita discriminação. No projeto, através das formações políticas, consegui me enxergar como sujeito de luta. Me empoderei, me descobri atriz e isso me transformou”.
Com brilhos nos olhos, ela conta que um dos momentos mais felizes de sua vida foi ter obtido o registro profissional (DRT) de atriz. Ao mostrar o braço arrepiado, relata com orgulho ter sido aluna do teatrólogo carioca Augusto Boal, na cidade de Santo André. Com ele, Maria aprendeu e praticou o Teatro do Oprimido, um método teatral criado pelo dramaturgo na década de 1970
“Nessas vivências, contei a minha história desde a periferia e, tempos depois, ela foi encenada por um grupo teatral em Brasília a várias personalidades políticas. Eu não estava mais no grupo, quando encenaram a minha história, mas isso me marcou profundamente.”
Além de ter sua história contada no teatro, Maria também se apresentou em alguns palcos. O último espetáculo apresentado antes da pandemia foi “Odara – Tradição, Cultura e Costumes”, no Teatro Oficina. Com direção de Márcio Telles, a peça abordou a criação do mundo com referências à mitologia yorubá.
Trajetórias
Aos 20 anos, Maria foi contratada como auxiliar no projeto social Meninos e Meninas de Rua, em São Bernardo. Depois, começou a desenvolver trabalhos em escolas municipais e ampliou seu diálogo com crianças e adolescentes. “Tenho orgulho de ser educadora social e quero fazer para outras pessoas o que fizeram por mim. Decidi ser o contrário daquilo que a sociedade queria que eu fosse. Aprendi a enxergar o racismo, a violência que se constrói sobre os nossos corpos, o machismo, a entender meus direitos sobre saúde, educação, mobilidade”, diz.
Tenho orgulho de ser educadora social e quero fazer para outras pessoas o que fizeram por mim. Decidi ser o contrário daquilo que a sociedade queria que eu fosse
Além de atriz e educadora social, ela também se transformou em contadora de histórias para crianças e adolescentes. “Ao longo desses anos, apresentei peças teatrais e dei muitas oficinas, tanto em projetos como dentro da minha comunidade. Tem um aluno meu que um tempo atrás veio falar comigo, dizendo: ‘Ô pro’, é assim que eles me chamam, ‘estou indo para Coreia com meu grupo de samba e, nossa, prô, você me ensinou várias coisas. Eu era muito rebelde, mas hoje vejo as coisas de uma forma diferente’”, exemplifica Maria, ao falar sobre seu trabalho.
“Hoje já tenho alunos meus que fizeram faculdade, que se formaram em pedagogia, em educação física. Tenho orgulho disso, porque ajudei eles a enxergarem o mundo de uma forma diferente e também a aumentarem a autoestima. E eu me enxerguei em muitas alunas negras, inclusive na questão de automutilação. Sabe por quê? Eu já me mutilei quando era mais jovem. São assuntos que precisamos conversar”, diz, ao mostrar as marcas feitas nos dois braços, segundo Maria, pelo sofrimento na experiência do racismo e da gordofobia.
A organização social, base da transformação na vida de Maria, também trouxe para seus sete irmãos o acesso à cultura e novos olhares. “Esse projeto me ensinou e vem ensinando dignidade às pessoas e eu torço para que ele continue. Como diz a música do Racionais, do lixo nasce flor.”
ECA na pandemia
O trabalho desenvolvido pela atriz e educadora social está diretamente relacionado à Lei nº 8069, de 1990, que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Constituído há 31 anos, o documento nasceu para garantir a proteção integral à criança e ao adolescente, promovendo, entre outros direitos, o acesso à saúde, à educação, ao lazer e à cultura.
Apesar de o ECA ser referência no país, Maria avalia que a pandemia de covid-19 dificultou sua aplicação, dado um cenário de aumento de violações dos direitos da infância e da juventude. “Muitas coisas que estavam debaixo do tapete vieram à tona, como a violência contra as crianças e as mulheres. A cada momento ouvimos uma história de feminicídio e de abusos”, diz. Ela acha que será preciso muito trabalho para reverter problemas sociais agravados pela escalada da crise sanitária, econômica e social. “Os governos deveriam se preocupar com o bem-estar das crianças e dos adolescentes. Falta para as pessoas que dão a canetada no país entender o que é o ECA na prática. Para mim, o artigo 4º é um dos mais importantes, porque ele fala da importância da vida, da alimentação, da profissionalização e de tantos outros direitos fundamentais. Sempre levo este artigo como exemplo nos trabalhos que eu faço.”