Há algumas semanas estive em uma sessão comentada do filme Medida Provisória, com participação do diretor Lázaro Ramos. Foi em São Paulo, no Instituto Moreira Salles (SP). Sem dar spoiler (vejam o filme), a conversa mudou a opinião que eu tive sobre o desfecho do personagem Santiago quando vi o longa pela primeira vez — Santiago é um homem branco, que na história trabalha no departamento de execução da medida provisória. Nos comentários que ouvi no IMS e depois, até trocando com o próprio Lázaro, fiz uma outra leitura e entendi como o diretor quis evidenciar o risco de a branquitude se calar diante do racismo.
Quando pessoas brancas deixam de participar, de agir na luta antirracista, todos nós perdemos. Como sempre, é claro que nós, pessoas negras, perdemos muito mais
Durante a pandemia da covid-19, sensibilizadas sobretudo pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), dos Estados Unidos, pessoas negras e brancas admitiram que, como afirma a filósofa e ativista Angela Davis, não basta não ser racista. É preciso ser também antirracista.
Mas o que significa, de fato, ser antirracista do ponto de vista da ação?
Alguém pode dizer que é muito fácil ser uma pessoa antirracista, afinal, exceto em grupos extremistas e radicais, pega mal ser a favor do racismo, não é mesmo? Mas só falar, da boca pra fora, que é antirracista também não resolve muita coisa. É necessário que todas as pessoas se engajem de fato no combate ao racismo estrutural.
Em um ensaio publicado na edição 41 da revista Serrote, do IMS, a escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, fala sobre as complexidades de ser uma mulher negra que escreve e aponta para a forma como a questão racial hoje está mais evidente, na “crista da onda”, e como, muitas vezes, as pessoas brancas consomem a literatura de pessoas negras como frutas da estação, e só porque agora estão na moda, amanhã sendo substituídas por outra.
Em um trecho, a autora afirma: “Que significa uma mulher ser uma moda? Sim, agora as pretas estão na moda. Serei uma mulher ou uma coisa? (…). Está a passar, vêm aí as asiáticas, as eslavas, as coreanas são melhores do que as nigerianas, mais misteriosas (…). Outono-inverno 2015-2016 — ou escravidão?”
Me identifiquei muito com a reflexão de Djaimilia, porque, como mulher negra, tenho a sensação que pessoas brancas que conheço e convivo se relacionam de forma muito superficial com as discussões raciais.
Em muitas das atividades e eventos que frequento, principalmente culturais, nas quais as temáticas, artistas, obras são protagonizadas por pessoas negras, é também de pele preta que é formado o público, a plateia. Em rodas de conversa sobre racismo, a maioria sempre é negra. Onde estão os brancos antirracistas nessas horas?
Tenho a sensação que pessoas brancas que conheço e convivo se relacionam de forma muito superficial com as discussões raciais. (…) Em rodas de conversa sobre racismo, a maioria sempre é negra. Onde estão os brancos antirracistas nessas horas?
Em salas de debates, rodas de conversa, onde estão as pessoas brancas para escutar e acolher nossas demandas? Nas ruas em protesto por mortes negras, muitas vezes o que temos é apenas, mais uma vez, nós por nós, nos apoiando em nossas dores e lutas. Sinto que apenas quando há espetáculos, performances e exibições, aí sim, as pessoas brancas participam. Continuarão apenas reproduzindo uma lógica de zoológico colonialista?!
Enquanto a branquitude se relacionar com as questões raciais apenas como estatísticas e conceitos de forma abstrata, distante de sua realidade, só porque não sentem na pele o que nos atravessa diariamente como pessoas negras, fica difícil contar com ela.
Sinto quase como uma falta de respeito pessoas supostamente progressistas e intelectualizadas desconhecerem nossas produções, autores, teorias, pensamentos, relegando-as apenas a nichos especializados, subestimando o quanto a discussão racial perpassa tudo o que diz respeito à nossa sociedade.
Eu gostaria de contar mais com presença, apoio e escuta ativa de pessoas brancas. Vocês estão dispostas a isso? No contexto eleitoral, contar com apoio de pessoas brancas na promoção de candidaturas negras seria fundamental. Mas o que vemos é que entre as pessoas eleitas, ainda é desproporcional nossa presença. O quanto as pessoas brancas estariam dispostas a ceder seus lugares de poder, de protagonismo? Até onde vai o antirracismo?