Prender por furto de comida?

Entretanto, para a fome não há alvará de prisão. Em algum momento, o estado brasileiro — em que se inclui o poder judiciário — terá de responder: o que fazemos com quem tem fome? Dar de comer? Ou dar abrigo no complexo habitacional da miséria, que nos acostumamos a chamar de prisões?, escreve Joel Luiz Costa. Foto: Getty Images
Joel Luiz Costa, advogado e coordenador executivo do Instituto Defesa da População Negra
20/10/2021 - Tempo de leitura: 3 minutos, 37 segundos

A sociedade — não só a brasileira, mas especialmente ela — precisa entender que o direito penal não é a resposta para nossos problemas sociais. Assim como não iremos combater o racismo, a homofobia e o sexismo com políticas públicas baseadas na restrição de liberdade, ou seja, prisões, também não será por esse meio que iremos impedir práticas como furto famélico ou furtos que, ainda que não se encaixem na categoria “itens para matar a fome”, têm como objetivo conseguir meios de se alimentar.

No país que alcançou a marca de 19 milhões de pessoas, ou quase 10% da nossa população, em estágio de fome, roubar para comer não é uma alternativa, e sim uma necessidade. Defensores públicos alertam que aumentaram os furtos de comida na pandemia, resultado da fome que voltou à realidade brasileira. E não vão ser a truculência ou as lições de moral arrotadas nos castelos do judiciário que irão abafar os ruídos de 19 milhões de estômagos vazios Brasil afora.

No país que alcançou a marca de 19 milhões de pessoas em estágio de fome, roubar para comer não é uma alternativa, e sim uma necessidade

“Roubei porque estava com fome”, admitiu uma senhora de 42 anos, mãe de cinco filhos, após ser presa acusada de furtar dois pacotes de macarrão instantâneo, um pacote de suco e uma coca-cola de 600 ml, com um valor total em torno de R$ 21. Por que esse furto interessa ao estado? E por que algo tão irrelevante deixa alguém presa por quase um mês?

Durante o julgamento de um habeas corpus, em que o crime em debate era o furto de dois itens que alcançava o valor de QUATRO REAIS, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Sebastião Reis, afirmou: “É um absurdo a gente estar a julgar um habeas corpus onde se discute a insignificância de um furto de itens que alcança o valor de R$ 4. Onde já se viu a quantidade de coisas que temos que julgar aqui, porque os tribunais se recusam a aplicar nossos entendimentos”.

“Entendimentos”, essa palavra vem bem a calhar, quando percebemos que os tribunais de primeira e segunda instância dão respostas muito duras a esses crimes, de alguma maneira, irrelevantes e pouca gravidade, enquanto o mesmo judiciário é bem mais permissivo quando falamos de crime econômico ou contra a administração pública. Quando a vítima é o estado, danos financeiros menores que R$ 20 mil são considerados insignificantes, levando o judiciário a não se debruçar sobre.

Enquanto o número de pessoas que passam fome dobra, o sistema de justiça se coloca como protetor de prateleiras de mercados

Mas se quem sofre o dano não é o estado, o princípio da insignificância tem como teto duzentos reais, segundo estudo da Universidade de São Paulo (USP). Esse paralelo reforça a atuação do estado na proteção patrimonial dos que têm muito patrimônio, e seu descompromisso na assistência a quem demanda um direito básico, se alimentar.

Em 2019, um morador do Rio de Janeiro foi condenado a três anos de prisão no regime fechado por ter furtado quatro barras de chocolate. A história só teve final feliz quando, no STJ, a defensoria conseguiu a absolvição do acusado, isso já em 2020 e tendo ela considerado que “o grau de reprovabilidade da conduta é mínimo” e que “não houve dano social relevante”.

O debate expõe a fratura da relação do sistema de justiça com o real contexto social que o país vive. Enquanto o número de pessoas que passam fome dobra, o sistema de justiça, um mecanismo pensado para controle social, em vez de se posicionar no combate à fome se coloca como protetor de prateleiras de mercados.

Entretanto, para a fome não há alvará de prisão. Em algum momento, o estado brasileiro — em que se inclui o poder judiciário — terá de responder: o que fazemos com quem tem fome? Dar de comer? Ou dar abrigo no complexo habitacional da miséria, que nos acostumamos a chamar de prisões?