Professora e ativista, Joice Aziza lança um livro de memórias da pandemia

A escritora, professora de História e ativista Joice Aziza mostra seu primeiro livro autoral: 'Diário de Isolamento' (Ed. Feminas) na Casa de Cultura Marielle Franco, em Franco da Rocha, Grande São Paulo. Foto: divulgação

17/05/2022 - Tempo de leitura: 6 minutos, 14 segundos

A escrita é uma forma de materializar sentimentos e um ato de coragem, diz a escritora, professora de História e ativista Joice Aziza, autora de Diário de Isolamento (Selo Dandaras, da Editora Feminas). O livro foi lançado no início de maio na Casa de Cultura Marielle Franco, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Em 72 páginas, misturam-se poemas, crônicas e relatos sobre como a pandemia de covid-19 atravessou a vida, os sentimentos e a trajetória de mulheres periféricas.

Nascida e crescida em Caieiras, município da Grande São Paulo, Joice sempre encontrou refúgio na escrita. As primeiras leituras não foram nada óbvias para uma criança. Sua mãe costumava deixar livros no banheiro e foi ali que ela leu as primeiras histórias: livros de Sidney Sheldon e Agatha Christie.

Ao vencer um concurso de Literatura no Ensino Fundamental, Joice sentiu que a palavra aumentava sua autoestima, fazendo-a se sentir mais potente, ainda que em meio aos desafios de ser uma menina negra na periferia. “Essa medalha de honra ao mérito recebida no Memorial da América Latina foi bem significante, porque eu fui a única da escola aqui da Vila Rosina [bairro de Caieiras]”, conta a autora.

História e poesia — Neste livro de estreia, Joice lembra que é possível narrar um período histórico também por meio da poesia, como bem faz no primeiro dia de confinamento:

Da janela contemplo o fim da tarde emoldurada numa obra de arte, pensativa e interrogativa: Como serão as próximas tardes? Terão cores? Ou apenas cinzas? Desejos de uma pandemia rápida e de poucos estragos (Joice Aziza)

O relato é pessoal, mas conectado à realidade de outras mulheres negras e periféricas. Os escritos trazem traços de quem utiliza a literatura também para ampliar o conhecimento e registrar fatos que ocorrem no cotidiano como parte da História oficial.

Caieiras, 21 de abril de 2020 #FICAEMCASA 8h – Ficar em casa agora é privilégio. Muitos brasileiros não estão conseguindo se manter por muito tempo em seus lares. É arriscado sair. Mas ficar em casa para a periferia é uma questão dúbia. Ou morre-se de covid ou de fome (Joice Aziza)

A escrita de Joice Aziza é um punho fechado em uma mão e uma flor na outra. Seus relatos vão desde um amor que se findou em meio à crise sanitária à saudade de dançar em uma roda de jongo.

São crônicas que poderiam ser notas jornalísticas, todas olhadas pela fresta de uma janela periférica, mas são também versos profundos em poemas curtos, a depender do dia e dos sentimentos que a atravessaram na escrita do livro.

No ano em que a ‘Terra Parou’, a violência contra a mulher não teve pausa no Brasil. O índice de feminicídio aumentou no Acre 30% no primeiro bimestre da pandemia e 41% em São Paulo, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em junho deste ano, e nessa estatística está Carla Cristina de Souza. Uma mulher negra, caieirense de 32 anos. Mais uma de nós que se vai pela existência do machismo. O medo de ser mulher está longe de se findar (Joice Aziza)

Testemunho — “O diário fala de educação. Não tem jeito. Ele passa por situações dos alunos ou questionamentos de dentro da sala de aula”, conta Joice, que faz questão de salientar que o livro traz suas várias vertentes enquanto educadora, ativista e escritora.

Em alguns dos textos, a escola pública e os debates em torno dela durante a crise sanitária também aparecem com força e contexto, relembrando capítulos marcantes de discussão sobre a volta às aulas,

É muito cansativo trabalhar em casa. Se dividir com o trabalho formal, afazeres domésticos, alimentação, autocuidado, brincar com a sobrinha, vem sendo tudo muito desgastante. Nenhuma tarefa fica 100%. As aulas presenciais vêm sendo adiadas a cada nova fase do Plano São Paulo de Saúde (Joice Aziza)

Além disso, Joice narra como foi de fato voltar para dentro das salas de aula em modelos híbridos e no chamado novo normal, que exigiu extensos protocolos de segurança e adaptação, tanto por parte dos estudantes, quanto dos profissionais de educação.

Bate o sinal, álcool em gel na mesa, na cadeira, nas mãos. Ajeita a máscara: “Bom dia, bonitos e bonitas, como estão? Ohh, bonitão, ajeita essa máscara. Gabriel, de novo sem máscara? A habilidade de hoje será…”. Quarenta e cinco minutos depois e já é preciso trocar a máscara. Troca de aula. Álcool em gel na mesa, na cadeira, nas mãos. Ajeita a máscara: “Bom dia, bonitos e bonitas, como estão? Ohh, bonitona, ajeita essa máscara. Não pode abraçar, não, gatão”. Doze alunos na sala de aula, o sonho de qualquer professor que leciona na rede pública. Devia ser o alívio, mas com o uso de máscaras e alunos divididos em escalas, o esforço é em dobro (Joice Aziza)

Poder da literatura — Para a escritora, essa obra é também sinônimo de resistência, já que, a partir dela, percebeu que pode reunir seus conhecimentos e suas várias versões em um livro. “A literatura tem a possibilidade de descobrir as várias vertentes de Joice. É algo que me faz reviver e rever a minha existência. Foi por meio dela que eu descobri que tipo de mãe eu sou”, diz.

Quando Joice iniciou os escritos, não imaginava que eles resultariam em um livro. Foi em uma transmissão online que uma amiga deu essa dica, o que rapidamente fez sentido à autora.

Uma das inspirações foi a escritoraCarolina Maria de Jesus, de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. “Eu, de fato, não consegui ler o Quarto de Despejo de Carolina, porque ele é muito pesado e me lembra histórias que a minha família contava. Eu já tentei fazer essa leitura duas vezes”, admite. Mesmo com essa dificuldade, Joice entendia a importância dos diários de Carolina e quão potente poderia ser reunir suas ideias e pensamentos em um formato semelhante. Em casa, as únicas vozes que ouvia eram as que estavam ao redor: sua família e também o coletivo de poesia que integra, o Flores de Baobá.

“Tenho ciência que é necessário escrever um diário, porque geralmente homens fazem diário e são validados, mas mulheres quando escrevem diário parece que vão escrever sobre romantismo. Não teria nenhum problema, ele é romântico também, mas eu não tive essa intenção. fui um pouco mais dura.”

Mesmo os textos que falam sobre amor, são altamente políticos, com contextos que demonstram o cenário periférico e seus desafios, como o fim de um relacionamento amoroso por conta do isolamento social.

Quanto a mim, tenho saudades das quintas-feiras em que saía da escola e passava as noites com Carlos, num desses quartos alugados. Sem sombras de dúvidas, meu melhor amor. Mas isso é assunto para depois (Joice Aziza)

Onde encontrar
'Diário de Isolamento' (72 páginas), de Joice Aziza, é vendido a R$ 30 no site da Editora Feminas