Um livro com fotografias feitas desde os anos 1960 por retratistas tradicionais na Comunidade da Serra, uma das maiores favelas do Brasil, em Belo Horizonte: Retratistas do Morro é o nome da publicação e também de um projeto de resgate da memória coletiva de um território, a partir de um acervo de mais de 250 mil imagens.
Artista e pesquisador, Guilherme Cunha integra a iniciativa. Ele explica que as imagens têm uma abrangência muito ampla, mais de meio século de registros, e que para compreender as camadas do que elas representam é importante fazer o recorte histórico e ampliar o alcance: “A gente trabalha com a ideia de que o pensamento deveria circular. A gente quer que essas imagens ocupem espaços de poder na sociedade.”
Inspirações — O projeto Retratistas do Morro nasceu de um encontro. Quando dona Ana Martins, moradora do Aglomerado da Serra, e Guilherme se conheceram, ela mostrou a ele uma coleção de setenta monóculos com fotos antigas da comunidade, todas tiradas por moradores e fotógrafos. Bailes black, festas de aniversário, casamentos e encontros de fim de semana são exemplos do cotidiano capturado pelas lentes de profissionais que moravam no morro. Desde então, o projeto se dedica a resgatar memórias, estudar negativos, restaurar, digitalizar e preservar o material fotográfico de dona Ana e também dos retratistas João Mendes e Afonso Pimenta.
Nascida no interior de Minas Gerais, Ana Martins morou em Governador Valadares antes de se mudar para a capital mineira. Vive na Serra há 46 anos, onde criou raízes e guarda com muito esmero sua coleção de monóculos. “É uma lembrança que eu tenho, para a minha família, meus netos, meus bisnetos, que eles vão ver como nós chegamos aqui, como que nós passamos aqui”, diz dona Ana.
Foi nos anos 1970 que o jovem Afonso Adriano Pimenta saiu do interior de São Pedro do Suaçuí para ajudar sua madrinha com as despesas da casa na favela chamada à época de Vila Santana do Cafezal, hoje parte integrante da Comunidade da Serra, em BH. A fotografia entrou em sua vida por necessidade. Como assistente do fotógrafo João Mendes, enquanto lavava as imagens já reveladas, Afonso aprendia o ofício. Começou a se estabelecer na década de 1980, registrando o início do movimento de bailes de black e soul, a convite de Misael Avelino dos Santos, um dos fundadores da Rádio Favela.
Muito antes de empregar Afonso, João Mendes trabalhou na roça com os pais dos 8 aos 12 anos de idade, quando se mudou de Inhapim para Ipatinga em busca de uma nova vida. Depois de passar por vários empregos, aos 15 anos o jovem João tirou as primeiras fotos: chamado pelo delegado de polícia de Ipatinga para trabalhar como fotógrafo da perícia, retratava cenas de crimes e casos forenses. No dia 2 de agosto de 1973, João Mendes abriu a Foto Mendes no bairro Serra, já em Belo Horizonte. A loja funciona até hoje.
Como ajudar o acervo a virar livro — A partir da pesquisa e do tratamento das fotos, o projeto Retratos do Morro vai virar livro. Além das imagens dos retratistas e de dona Ana, serão publicadas também histórias pessoais e relatos.
A obra tem previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022. Para dar conta dos valores de impressão, logística e outros custos, o grupo abriu um financiamento na plataforma Catarse, onde pretende arrecadar o valor de R$ 33.250. Os apoiadores podem receber recompensas, como exemplares do livro.
“Com sua ajuda o livro dos Retratistas do Morro poderá contribuir para formação de outros imaginários, mostrando a beleza das pessoas e das fotografias feitas no Aglomerado da Serra nas décadas de 1970 e 80. Essas fotografias conectam a vida das populações de favela, suas lutas, conquistas e identidades à história das cidades brasileiras”, diz um trecho no texto da campanha.