O presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Adalberto Maluf, está preocupado. À frente de uma entidade com 68 filiados, ele não esconde a contrariedade diante da total inexistência de uma política industrial que contemple a massificação dos veículos elétricos no Brasil.
Aos 39 anos, Maluf também é diretor de marketing e sustentabilidade da chinesa BYD, uma das maiores fabricantes de veículos elétricos no mundo. Por isso, está acostumado a ver de perto investimentos e um trabalho sério em torno do assunto, fato que, a seu ver, está longe de acontecer no País. “O Plano Nacional de Eletromobilidade jamais saiu do papel”, afirma.
Em entrevista ao Mobilidade, ele diz que a indústria brasileira está estagnada e, nesse compasso, mais fabricantes fecharão suas portas daqui a alguns anos, desinteressadas por uma política interna que só beneficia automóveis com motores a combustão. “Estamos desconectados do resto do mundo”, salienta.
Aos poucos, as montadoras estão lançando carros elétricos no Brasil. Qual é a realidade desse tipo de veículo no País?
Adalberto Maluf: Os lançamentos e o crescimento no número de sócios da Associação Brasileira do Veículo Elétrico podem passar a impressão de que vivemos um período extremamente positivo. Mas não é o que acontece no Brasil. O tema ganhou relevância na Europa, na China e nos Estados Unidos; no entanto, o Brasil encontra-se na contramão dessa tendência. E por quê? Porque o País nunca quis discutir nenhuma política sobre carros elétricos com profundidade. Estamos totalmente desconectados em relação ao resto do mundo.
Mas o tamanho da frota brasileira de veículos eletrificados não está aumentando?
Maluf: Sim. Neste ano, a ABVE projeta crescimento de 42% de modelos eletrificados, em comparação a 2020. Só o primeiro semestre registrou aumento de 86% ante o mesmo período do ano passado, com 13.899 veículos eletrificados novos emplacados.
O mercado nacional deve chegar a 28 mil unidades eletrificadas, em 2021. Por aqui, os veículos elétricos correspondem a 0,04% do total de vendas. São números muito tímidos quando observamos o cenário externo. Na Europa, os elétricos responderam por 3% do mercado, no primeiro trimestre de 2020, e esse volume passou a 18%, no mesmo período de 2021. Em países como a Alemanha, foi de 3% para 27%. É uma verdadeira revolução.
Carro elétrico ainda significa incerteza em alguns mercados ou é um caminho sem volta?
Maluf: A disseminação do veículo elétrico vai demorar mais ou menos em cada mercado, mas não há como deter esse movimento. Estudos apontam que, em 2030, 60% dos carros vendidos serão elétricos. Uma demonstração do nosso atraso é que, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), somente de 10% a 15% da frota brasileira será de elétricos, em 2050.
Por que existe esse desinteresse na discussão de uma política para carro elétrico no Brasil?
Maluf: É claro que o biocombustível e o petróleo ainda são soluções eficientes; porém, as autoridades brasileiras e a indústria precisam entender que não podemos ficar de fora desse debate, sem qualquer tipo de planejamento. O carro elétrico precisa ser discutido até por uma questão de preservação do meio ambiente. Mas, hoje, o governo brasileiro diz que a melhor política ambiental é não ter política ambiental. O Brasil não possui programa de eficiência energética, tampouco política para veículos elétricos. O resultado poderá ser catastrófico: as montadoras vão deixar o País. O mundo virou a chave e, enquanto isso, vivemos das tecnologias do século passado, da maldição dos motores 1.0, que não significam eficiência. Se não bastasse, o governo pune o carro elétrico, impondo sobretaxa de impostos, em vez de oferecer benefícios. O Brasil comete a estupidez de cobrar impostos de acordo com a cilindrada do automóvel, quando deveria ser pela eficiência energética dele.
O senhor vislumbra, então, um cenário de fabricantes interrompendo suas atividades no Brasil?
Maluf: Sem dúvida. Para que continuar no Brasil produzindo automóveis com motores a combustão se quase todos os países já estão voltados para a eletromobilidade? A produtividade da economia brasileira estagnou nos últimos dez anos e nossa indústria perderá cada vez mais competitividade. Já fomos o sexto maior produtor de carros do mundo; atualmente, estamos em 12º lugar. Das 20 maiores montadoras mundiais, 18 já manifestaram a meta de só fazer carros elétricos até 2030. A Volkswagen, por exemplo, tem uma fábrica em Zwichau, na Alemanha, dedicada a veículos elétricos. Diante disso, o que acontecerá com o parque industrial brasileiro? A Ford já saiu e penso que, nos próximos anos, de quatro a seis fábricas serão fechadas, no Brasil, por decisão das matrizes, que não enxergam um futuro promissor em solo brasileiro. A consequência é que o setor de autopeças também está sendo desmantelado.
Existe diálogo entre governo e ABVE em prol de alguma política industrial que favoreça o carro elétrico?
Maluf: O Plano Nacional de Eletromobilidade, de 2018, não sai do papel. É uma conversa que não avança. A diferença entre o que acontece aqui e em outros lugares é brutal. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden pôs o país de volta ao jogo, ao anunciar investimentos de mais de US$ 600 bilhões em transporte elétrico e US$ 450 bilhões para inovações tecnológicas. Na Europa, o chamado Pacote Verde destinará recursos para a reconstrução da economia pós-covid em projetos integrados. Um dos compromissos é reafirmar a meta de neutralidade de carbono até 2050, com impulso para energias renováveis e agronomia de baixa emissão. Já a China está colocando em prática seu 14º plano de desenvolvimento, que prevê, entre outras medidas, digitalizar sua indústria. No Brasil, não investimos em inovação. Para ter uma ideia, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico contingenciou 90% dos recursos de R$ 5,2 bilhões. Ou seja, tinha o dinheiro, mas não gastou. E não responsabilizo só o governo. Os recursos deveriam vir também da iniciativa privada, mas, hoje, a indústria automotiva gasta dinheiro de pinga quando o assunto é inovação tecnológica.
Na prática, o que pode acontecer com a indústria automotiva – por tabela, com o carro elétrico – sem os investimentos em pesquisas e tecnologias?
Maluf: Esse retrocesso poderá ser a bala de prata da indústria automotiva nacional. Futuramente, 30% do valor do automóvel virá da eletrônica embarcada e de novas tecnologias, e não mais de aço e ferro. Não existe mais engenharia nacional, porque, hoje, não se aprovam projetos no Brasil. A engenharia automotiva brasileira sempre esteve entre as dez melhores no mundo e, agora, ela praticamente desapareceu. Nosso parque industrial tem capacidade de produzir 5 milhões de veículos por ano, mas só vende 2 milhões. Claro, há os efeitos da pandemia, mas os resultados são trágicos quando se abre mão da tecnologia e da inovação e o carro elétrico acaba sofrendo os reflexos disso.