‘Estamos na contramão do trânsito seguro: sem educação, campanhas são só marketing’, diz psicóloga

Segundo Cecília Bellina, especialista em medo de dirigir, todo o processo para a habilitação precisa ser revisto. Foto: Adobe Stock

Há 2 dias - Tempo de leitura: 6 minutos, 36 segundos

A psicóloga Cecilia Bellina, pioneira no Brasil em ajudar pessoas a enfrentar o medo de dirigir, trabalha com o trânsito há mais de três décadas. Para ela, apostar na educação é a única opção que temos para reverter os índices de mortes e sinistros de trânsito.

“Uma campanha só atinge seu objetivo quando o tema já está enraizado na cultura das pessoas. No Brasil, a palavra ‘trânsito’ ainda é sinônimo de congestionamento. Pouca gente entende que trânsito é um ambiente social, que reflete o nível de desenvolvimento de um país”, afirma. Confira, a seguir, a entrevista que a especialista concedeu ao Mobilidade Estadão.

Ano a ano, a situação da violência no trânsito brasileiro só piora. O que é preciso fazer para sairmos dessa situação?

Cecilia Bellina: Segurança no trânsito tem vários caminhos, tem várias linhas de atuação. Temos a situação das vias e rodovias, a fiscalização, a habilitação, os modelos de autoescola, o estado dos veículos e dos condutores, apenas citando alguns. Mas, se olharmos para todas essas frentes, todas elas vão levar para a educação. Ou a falta dela, nesse caso.

Leia também: ‘Na Pista Certa’: segurança viária vira exercício lúdico para crianças no Centro de SP

Na minha visão, falta educação de trânsito para o motorista, para o fiscal, para o agente de trânsito, para o engenheiro de tráfego e para o instrutor de autoescola. Falta educação para motoristas. Porque para termos segurança viária, as pessoas têm que conhecer e respeitar as leis. E eu pergunto: quem conhece as leis? Em que momento essa conversa acontece em nossa sociedade? Ela não acontece. E nenhuma dessas pessoas foi educada corretamente para frequentar o ambiente trânsito, por isso ele está em declínio.

Então, o que vejo como um primeiro passo é a criação de um programa de educação para o trânsito desde o ensino infantil, que seja obrigatório em todas as escolas. E isso está previsto no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), de 1997, em seu artigo 76.

Mas o Ministério da Educação (MEC) não coloca em prática esse programa, alegando que tem autonomia para definir o currículo escolar. Veja, estamos falando de um problema que mata milhares de pessoas por ano, a grande maioria homens, um desafio social gigante que tira muitos pais desses estudantes. E se isso não é uma prioridade para nossa sociedade, eu não sei qual seria.

Campanhas de conscientização sobre o tema não funcionam?

Cecilia: As campanhas são muito importantes, mas elas devem ser parte de um trabalho maior, que precisa ser integral. Uma campanha sem amarração com todos os demais aspectos que falei, educação, formação, infraestrutura, fiscalização, entre outros, acaba virando apenas uma peça de marketing. Um mês no ano em que paramos e falamos de mortes, acidentes, depois as pessoas seguem ‘vestidas de lata’, que é como eu chamo quem está dentro dos carros. E continuam fazendo tudo igual.

Vestidas de lata, as pessoas estão camufladas. E os vidros escuros, que ninguém fiscaliza, ajudam a esconder a pessoa que está lá cometendo infrações e atentando contra a vida do outro.

Como você acha que deveria ser a formação dos motoristas?

Cecilia: Se existisse o programa que comentei de educação para o trânsito nas escolas, o conhecimento seria transmitido ao longo dos anos escolares e as pessoas não precisariam aprender tudo em 40 horas de curso teórico em uma autoescola. Todo mundo detesta esse proceso, é cansativo, pouco interesante.

E a maneira como esse conteúdo é ensinado não prende a atenção, porque as pessoas que ensinam não foram formadas, como eu disse. Quem ensina não foi educada para o trânsito.

Outra coisa que deveria acontecer é que quem está se habilitando deveria ser obrigado a se colocar no lugar do outro: do pedestre, do ciclista, do motociclista. Da mesma forma deveria acontecer para o motorista de ônibus, de moto, e o de caminhão. Porque no trânsito representamos vários papéis e entender as dificuldades do outro nos ajuda a sermos melhores, mais empáticos.

Por que as pessoas parecem se comportar de forma pior no trânsito do que em outros ambientes?

Cecilia: Por que nosso trânsito não é humanizado, as pessoas não se olham. ‘Vestidas de lata’, as pessoas se desrespeitam, porque estão camufladas dentro do carro. É uma disputa, um vale-tudo, resultado da falta de educação. Repito: isso acontece porque as pessoas não foram educadas para ocupar corretamente esse ambiente.

O trânsito é o maior ambiente social que existe no mundo, mas as pessoas não percebem isso. Quando vamos a uma festa, nossos pais nos orientam a cumprimentar as pessoas, dizem como devemos nos comportar, comer, etc.

No trânsito, contudo, não recebemos essas orientações da forma correta, então ninguém reconhece as regras daquele ambiente. Em um banco você chega e entra na frente de alguém na fila? Não entra. Mas no trânsito as pessoas fazem, vão pelo acostamento e roubam o lugar do outro.

E muita gente alega que a multa muda comportamentos, não muda. Ela muda apenas na hora. Então, se a pessoa sabe que tem radar, ela passa a a 80 km/h, depois pisa de novo e vai a 150 km/h. Porque para mudar comportamento é preciso ter consciência.

A violência do trânsito é uma das causas do medo que algumas pessoas têm de dirigir?

Cecilia: Sim, sem dúvida. E eu percebo que o número de pessoas com medo de dirigir tem aumentado a cada ano. Porque não se aprende a dirigir na autoescola: lá aprendemos a passar no exame. E não é culpa das autoescolas. Enfim, as pessoas aprendem a dirigir no meio da rua, um ambiente totalmente imprevisível, totalmente agressivo.

Então, as pessoas que estão aprendendo tomam buzinada, os demais motoristas não têm paciência, agem como se estivessem numa guerra. Aprendendo a dirigir, você erra de forma expositiva, e todo mundo julga todo mundo no trânsito. E quanto mais as pessoas ficam ansiosas, mais elas perdem a concentração, a memória e erram. Então as pessoas se recolhem, desistem. E é aí que meu trabalho começa.

Se você tivesse numa posição que te permitisse tomar três medidas para mudar a nossa segurança viária, quais seriam elas?

Cecilia: A primeira medida seria a obrigatoriedade de um programa de educação para o trânsito voltado desde o ensino infantil até o fundamental. Isso criaria conversas mais consistentes e invertidas, como cobranças como: ‘Papai, se você bebeu não pode dirigir’, ou ‘para de olhar o celular que é perigoso’ e por aí vai.

Outra ação seria uma reciclagem para todos os motoristas que vão renovar a carteira de habilitação. Isso teria que ser muito bem organizado, porque é muita gente, e o conteúdo teria que ser interessante. Mas dá para fazer. Porque muda muita coisa até que chegue o período de renovação, como os hábitos da sociedade, tecnologia dos carros, e as pessoas têm que saber.

E, por último, eu faria uma escola para professores de trânsito. As pessoas que ensinam na autoescola precisam estar preparadas para lidar com diversos tipos de alunos. Precisam ter didática e conhecer as leis de trânsito. Porque o modelo que temos hoje não é bom e não está funcionando.

Saiba mais: Maio Amarelo: internações por acidentes de trânsito no País cresceram 44% na última década