Apaixonado por viajar de moto para conhecer novos lugares e culturas, o motociclista brasileiro Marcelo Leite costuma visitar regiões, no mínimo, inusitadas, onde a maioria das pessoas preferia passar longe. Para sua mais recente viagem de moto, o engenheiro de 60 anos escolheu a Ucrânia. “Uma das poucas ex-repúblicas soviéticas que eu não conhecia”, diz, parecendo ignorar que o país encontra-se em guerra com a Rússia.
Com milhares de quilômetros na bagagem e mais de 120 países visitados, Marcelo, inclusive, já esteve em outras áreas de conflito. “Estive no Sudão, em plena crise do Darfur, e, no norte da Mauritânia, com os soldados da Frente Polisario. Ambas foram das melhores experiências que tive. Nesses ambientes, a realidade costuma ser completamente diferente do que se imagina”, garante ele.
A começar pela facilidade para entrar na Ucrânia. Depois de conseguir a documentação e as autorizações necessárias, de maneira surpreendentemente simples, Marcelo, que divide sua vida entre Londres, na Inglaterra, e São Paulo, partiu com sua Honda CRF 300L Rally de sua casa, na capital inglesa, para mais uma viagem de moto. Seu primeiro destino era Krościenko, no sul da Polônia, no início de agosto.
A pequena cidade no meio das montanhas e acessível apenas por estradinhas vicinais foi a estratégia do experiente viajante para evitar o caos nas fronteiras principais. “Acertei na mosca! Nada de ônibus, vans ou caminhões. Madruguei e quando cheguei só tinha eu e mais alguns poucos carros. Documentação ok, algumas perguntas óbvias, dada a situação, e lá estava eu, em menos de 15 minutos, já acelerando a moto em solo ucraniano” relembra.
Depois de percorrer estradas que passavam por pequenos vilarejos, o motociclista chegou a Lviv, maior cidade no leste da Ucrânia em pouco mais de uma hora. Enquanto estacionava a moto em frente à sua hospedagem, ouviu o primeiro alarme de ataque aéreo em solo ucraniano.
“Apesar de Lviv ser distante das atuais áreas em conflito, alguns dias antes, um míssil atingiu o subúrbio da cidade. O ataque não causou fatalidades, mas destruiu várias casas e uma fábrica. Evidentemente, tudo isso rondava minha mente enquanto eu me perguntava o que deveria fazer”, relembra.
Acalmado pela recepcionista, Marcelo se instalou e saiu para conhecer a cidade. Único turista estrangeiro em Lviv, o brasileiro, pilotando uma moto com placa britânica, foi confundido com voluntário que havia vindo ajudar na guerra. “Raríssimas pessoas falam inglês. Todo mundo sabe russo. Foi ficando por isso mesmo. Me acostumei a acharem que eu era voluntário britânico” diverte-se.
Embora a cidade aparente normalidade, a guerra se faz presente desde as proteções instaladas nas construções históricas às conversas com os locais. Enquanto alguns compreendem a decisão do presidente Volodymyr Zelensky de proibir que os homens de 18 a 60 anos saiam do país, outros se angustiam com a possibilidade de que, a qualquer hora, maridos, pais e irmãos possam ir para o front sem saber se voltarão, relata o brasileiro.
Talvez por isso, rodas de amigos rindo em voz alta e casais de mãos dadas lotam os bares, cafés e restaurantes na noite de Lviv. “Por trás das aparências tem muita coisa escondida. Lviv é a cidade das artes, dos poetas, dos músicos, da ‘joie de vivre’! Deixar de viver a vida nessa intensidade é dar a vitória para o inimigo…”, filosofa Marcelo.
Antes mesmo do sol nascer, o motociclista brasileiro arrumou sua bagagem na moto para pegar a estrada rumo à Kiev. “Me avisaram que teria várias barreiras militares e que não deveria fazer fotos nem filmar lugares ditos ‘estratégicos’, como pontes, viadutos e qualquer instalação ou veículo militares”, lembra ele.
Imensas plantações, principalmente, de milho, girassol e trigo, ladeavam grande parte dos 540 quilômetros de estrada até a capital ucraniana. “Paisagens coloridas para lembrar que a Ucrânia é um dos maiores exportadores de grãos do mundo”, observa o viajante.
Embora a rodovia fosse quase sempre de boa qualidade, o mesmo não pode ser dito dos postos de serviços. “A maioria lembra os da rodovia Transiberiana, ou seja, uma bomba de gasolina e outra de diesel, uma casinha fechada com uma janelinha blindada, onde se faz o pagamento, e nada mais. Nos fundos, um pequeno barraco de madeira com um buraco no chão funciona como banheiro”, conta Marcelo.
Ao voltar para a estrada, depois de parar para almoçar, em Rivne, o brasileiro percebeu que dois motociclistas o seguiam. “Estranharam a placa estrangeira, fizeram gestos amistosos e me acompanharam por um tempo até pararmos em um posto. Apesar da dificuldade na comunicação, tratava-se claramente de um cumprimento de boas vindas que nós, motociclistas, estamos acostumados em várias partes do mundo, mas com um “algo a mais” pelo momento do país”, esclarece.
Marcelo chegou a Kiev, capital da Ucrânia, no meio da tarde. Com 4,5 milhões de habitantes, a capital tem boa estrutura, com grandes avenidas, viadutos e modernos centros comerciais.
Apesar da forte presença militar e de alguns prédios destruídos, em Kiev, os negócios e o comércio seguem funcionando. Não falta água e nem combustível, mas a população se preocupa com o inverno que se aproxima.
“Há uma grande preocupação com a energia para o próximo inverno, já que as grandes usinas foram afetadas e, hoje, o país funciona no limite com base apenas no fornecimento das menores”, explica o engenheiro.
Marcelo se hospedou em um albergue, bem no centro da capital da Ucrânia. “Um casarão com um grande pátio interno perfeito para deixar a moto em segurança, mas também cheio de mesinhas onde tudo acontece”. Além do motociclista brasileiro, os hóspedes eram, basicamente, soldados, voluntários de guerra e jornalistas estrangeiros.
Sua moto, com placa britânica, era um ótimo pretexto para começar um bate papo. “Minhas viagens mundo afora, o paralelo com outras áreas em conflito e a ótica terceiro-mundista rendiam assuntos sem fim. Aprendi muito com essas conversas e ainda fiz vários contatos com Ucranianos que me ajudaram a explorar a cidade e muito mais”, conta ele.
Marcelo, aliás, revela que, antes de uma viagem de moto, costuma fazer contatos com pessoas locais previamente. “Normalmente esses primeiros me abrem portas que dificilmente conseguiria sozinho”.
Embora Kiev tenha sofrido apenas ataques aéreos e de drones, o exército russo chegou bem perto da capital. No início da guerra, cerca de 20.000 soldados russos, vindos da Bielorrússia, que fica a apenas 200 km ao norte, invadiram a Ucrânia e marcharam em direção à Kiev. Ficaram por mais de um mês nos arredores da capital.
O exército da Rússia ocupou as pequenas cidades de Borodyanka, Hostomel, Irpin e Bucha e mataram milhares de civis. As atrocidades dos soldados russos ganharam as manchetes internacionais com o “Massacre de Bucha”.
Vídeos e fotos do assassinato brutal de cerca de 500 civis na pequena cidade ganharam o mundo depois que o exército russo se retirou. “Em Bucha, nos primeiros dias da invasão, dezenas de homens foram metralhados atrás da igreja. Casas foram deliberadamente destruídas e muitas mulheres, violentadas” conta Marcelo.
Como atos simbólicos de dominação, museus, estátuas e edifícios da administração local também foram atingidos. Mas também há prédios residenciais inteiros no chão, destaca o brasileiro.
Salas, quartos, cozinhas, ainda mobiliados, pendurados em restos de edifícios em ruínas. “Também vi uma escola e uma creche que foram atingidas. Uma cena mais forte que a outra!” lembra o motociclista.
Não há outro nome senão massacre ou crimes de guerra, afinal, não se tratou de um embate entre forças armadas. “Não havia nenhum grupo militar ucraniano nesse episódio. Apenas a população local, a polícia e os bombeiros”, lamenta.
Para surpresa do brasileiro, alguns ucranianos se dispõem a contar essas histórias. “Apesar da dor, elas querem que o mundo saiba do ocorrido”.
Uma delas foi a Sra. Polina que teve sua vida destruída. Perdeu familiares, vizinhos, amigos e, como muitos outros em Borodyanka, sua casa. “Até hoje ela vive em um abrigo improvisado. O governo prometeu ajuda para reconstrução das residências atingidas, mas nada aconteceu nesse sentido”, aponta o brasileiro.
“Todo santo dia ela vai aos escombros do seu apartamento sob o pretexto de ver se não houve nenhum saque, mas me parece muito mais um vínculo emocional com sua própria história pessoal que precisa ser mantido. “Ver isso de perto e ouvir essas histórias acaba com qualquer um”, diz.
De volta à capital Kiev, Marcelo ainda não tinha conseguido se acostumar ao som dos alarmes antiaéreos que soavam dia a noite. “Nunca consegui achar normal e seguir, como se nada fosse, como as pessoas sugerem”, confessa.
Ainda impactado pelas atrocidades cometidas pelos soldados russos e descritas em detalhes pelas pessoas que sofreram na pele, Marcelo lembra que também ouviu relatos de pelotões que mantiveram uma postura “quase civilizada e de respeito com os civis”.
Aparentemente, o grau de selvageria dependia muito de cada pelotão e de seu comando. Em alguns fóruns, ainda se discute o que foi ou não crime de guerra, como se existisse um protocolo do que pode ser aceito em uma guerra”, indigna-se. “Não existe guerra que não arruine a vida das pessoas comuns. Nenhuma guerra deveria ser aceita e ponto final!”, acredita o brasileiro.
Com a bagagem na moto, era hora de deixar a Ucrânia e pegar a estrada de volta para casa. Foram 2.500 km pelo mesmo trajeto, mas no sentido contrário, até Londres.
No último dia 30 de agosto, apenas quatro dias após a viagem de moto de Marcelo Leite pela Ucrânia, a capital Kiev foi alvo de um dos maiores ataques de todo o conflito, com 28 mísseis. “A grande maioria foi interceptada, mas duas pessoas morreram soterradas pelos escombros causados pelos poucos mísseis que conseguiram passar pelo bloqueio antiaéreo”, finaliza.
Ver Comentários
Parabéns pelo relato da viagem!