Os mais jovens não conheceram o lendário prefeito Odorico Paraguaçu, seu assessor Dirceu Borboleta, o jagunço arrependido e de fala fina, Zeca Diabo, dentre outros icônicos personagens do saudoso Dias Gomes, que morreu em maio de 1999 vítima de uma imprudência no trânsito de São Paulo.
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Para que os leitores mais jovens entendam o contexto deste artigo, vale um pequeno resumo da novela O Bem-Amado, exibida pela TV Globo no início da década de 1970. Sucupira é uma cidade fictícia, no litoral da Bahia, onde um prefeito populista e serviçal da ditadura que governava o País à época decide construir o cemitério, pois, como costumava dizer, era uma vergonha a cidade ser “desapetrechada” de um campo santo.
Concluída a obra, entretanto, uma crise ameaça a popularidade do prefeito: ninguém mais morre na cidade e a inauguração do cemitério nunca consegue ser realizada. Odorico passa, então, a procurar um cadáver para viabilizar a operação de sua maior obra. Até mesmo um boicote a vacinas ele trama. Incrível a atualidade da obra.
Este início de 2025 marca a posse dos novos prefeitos municipais, gestores diretos da mobilidade urbana. Nesse âmbito, um dos temas mais sensíveis é a segurança viária. Continuamos sendo um dos países do mundo que mais mata no trânsito: enquanto países europeus matam 3, 4 ou 5 pessoas por 100 mil habitantes, nós matamos mais de 16, segundo a OMS, números piores que os do Paquistão ou da Indonésia.
Imagine que você desenvolveu um novo sistema de transporte: eficiente, rápido e atraente. Mas também imagine que ele irá matar mais de 1,2 milhão de pessoas por ano e será a maior causa de óbitos entre adolescentes e jovens.
Ese sistema de transporte irá matar, só no Brasil, mais de 120 pessoas por dia, como se diariamente caísse um avião vitimando todos os ocupantes. Tenho certeza de que ninguém aprovaria sua invenção. Pois é. Esse é o trânsito! E estou certo de que quaquer leitor do Estadão conhece alguém que morreu nele.
A literatura e a ciência mostram o caminho para reduzir e até eliminar as mortes no trânsito: políticas de gerenciamento da velocidade, priorização ao transporte público, proteção aos vulneráveis e fiscalização do trânsito.
Um dos pilares do gerenciamento de velocidade é o uso da fiscalização para obrigar os motoristas a cumprirem a legislação. Alguém é contra que se cumpra a lei? Que se obrigue motoristas a obedecerem ao que determina as regras de trânsito?
A cidade de São Paulo, que depois de anos de redução de mortes, volta a apresentar números epidêmicos de óbitos no trânsito. A cidade alcançou a mais expressiva redução de mortes no ano que implantou os radares de controle de velocidade. Cidades como Bogotá, na Colômbia, também colheram números expressivos utilizando a tecnologia como ferramenta para assegurar segurança. Lá, os radares se chamam Câmara Salva Vidas.
Tudo isso é sabido, ressabido, testado e comprovado. Soma-se a isso o fato de que o histórico dos radares mostra que é uma imensa minoria aquela que insiste em não cumprir a legislação e continuar colocando em risco a vida de pedestres, ciclistas, crianças e idosos. Em São Paulo, apenas 5% dos carros respondem por mais da metade das infrações.
Apesar de tudo isso, o prefeito de Marília (SP), Vinícius Camarinha (PSDB), recém-empossado no cargo, resolveu celebrar, no primeiro dia útil de governo, a morte. Promoveu solenidade festiva, acompanhado de assessores e apoiadores, rompendo com alicates os cabos dos radares que fiscalizavam o trânsito, protegiam os que cumpriam a lei e os vulneráveis.
Tal qual Odorico Paraguaçu, o prefeito de Marília parece buscar cadáveres para inaugurar sua gestão. Como toda ação tem reação, naquele fatídico dia do desligamento das câmeras que salvam vidas, três jovens ficaram gravemente feridos em um sinistro na Avenida Cascata.
Na novela, permitam-me antecipar o final, Odorico morre e ele próprio vem a ser o cadáver que inaugura o cemitério. Na vida real, as mortes virão daqueles que precisam se deslocar nas cidades. Podem ser crianças, idosos, vulneráveis. Pode ser eu, você, um dos seus parentes ou até mesmo o prefeito.
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