“Da zona oeste de São Paulo, saem, diariamente, em direção ao trabalho, o equivalente à população inteira do Uruguai.” A frase, muito popular entre especialistas em mobilidade e urbanistas, retrata uma realidade da capital que se materializa pelos congestionamentos, viagens muito longas e superlotadas em todo o sistema de transporte público.
Em 2017, data da última Pesquisa Origem-Destino, do MetrôSP, que foi divulgada em 2019, as viagens da população da zona oeste paulistana já somavam 3,7 milhões/dia, enquanto o Uruguai não chegava a 3,5 milhões de habitantes.
Para entender melhor o impacto da estrutura espacial e social da capital paulista na mobilidade, conversamos com Vinicius Andrade, arquiteto, urbanista e professor da Escola da Cidade. Confira, a seguir.
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Se as pessoas tinham esperança de que o trânsito melhoraria no pós-pandemia, hoje não há mais. O que aconteceu?
Vinicius Andrade: A resposta a essa pergunta não é fácil. Mas, analisando o contexto do período, concluímos que, neste ano, a vida voltou ao normal.
Durante a pandemia, notamos um surto de esperança, até mesmo nos especialistas, de que o evento extremo mudaria algo – a famosa “herança positiva da pandemia”. Historicamente, as populações passam por pestes e, quando elas vão embora, as pessoas se acomodam e tudo volta ao normal. E isso aconteceu, também, com o trânsito.
Mas o home office não deveria contribuir para melhorar a fluidez no tráfego?
Andrade: A cultura do home office não foi inventada na pandemia e ela não é massiva. Talvez ela tenha despertado, naquela fase, o olhar de alguns administradores, que, antes, não estavam cientes dessa possibilidade, mas esse sistema de trabalho atinge uma parcela ínfima da população.
E, sobretudo, são pessoas que já se deslocam pouco, em termos geográficos e territoriais, abrangendo o trabalho que é mais intensivo em atividades relacionadas à intelectualidade, entre outros exemplos.
Cidades como Bogotá e Paris tiveram avanços em mobilidade impulsionados pela pandemia. Por que isso não ocorreu aqui?
Andrade: Compartilho uma visão com outras pessoas que estudam o tema no Brasil de que existe, aqui, um problema de demanda. Há, em nossa estrutura espacial e urbana, uma demanda desproporcional por deslocamentos. E a mobilidade é consequência disso.
Quando falamos de mobilidade elétrica, tecnologias para o setor, ciclovias e modos ativos de transporte, acho que são soluções maravilhosas. Mas, a meu ver, não estamos tratando a questão fundamental.
É isso que nos difere dos países que registraram progressos, como os mencionados. É muito importante que isso fique claro em todos os grandes centros urbanos, especialmente os que registraram rápido crescimento populacional, que esse desequilíbrio traz vários impactos negativos.
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Então, o problema dos congestionamentos na capital paulista passa pela demanda desproporcional por deslocamentos?
Andrade: Sim, nossa estrutura espacial e social requer aplicação intensiva de mão de obra, que, em geral, reside muito distante do seu trabalho, e há necessidade de longos deslocamentos diariamente. Juntando tudo isso, existe um grande contingente populacional que se desloca durante duas ou três horas todos os dias para chegar ao trabalho, sobrecarregando qualquer sistema.
Basta olhar para os lados: as ruas e avenidas estão paradas, o Metrô de São Paulo e os trens da Companhia Paulista de Transportes Metropolitanos (CPTM) estão sobrecarregados e até algumas ciclovias. Não há sistema que resista à demanda que temos hoje por deslocamentos, que é gigantesca.
Então, vejo que se discute muito os sintomas, como os congestionamentos, mas não o problema, e acredito que esse entendimento seja essencial para pensarmos em formas de resolver a questão.
O transporte público, uma das soluções para o trânsito, está conseguindo atender a população?
Andrade: Historicamente, nossas políticas públicas de transporte nunca alcançaram demanda, e isso não é nenhuma novidade. Hoje, os desafios são maiores do que as possibilidades, tanto em relação aos recursos financeiros como aos técnicos mesmo.
Outra questão é que a prioridade dos investimentos ainda é regida por posições de interesse, ideológicas, sem base em evidências e dando muita atenção ao segmento rodoviário, em detrimento do sistema sobre trilhos, entre outras alternativas.
Mas é preciso fazer uma ressalva: o Metrô da capital paulista, de fato, avançou muito pouco. E aqui volto à questão da estrutura urbana: a cidade é muito espraiada e com topografia forte. Na região da Avenida Paulista, por exemplo, é preciso descer 12 escadas rolantes para chegar até a plataforma – algumas estão a 30 metros do nível da superfície.
Embora o modal seja supertecnológico e moderno, talvez ele não seja a melhor opção para São Paulo, uma vez que foi concebido para cidades planas. Acredito que foram adotadas soluções de estrutura sem o desenvolvimento local, com um custo altíssimo. É preciso pensar nas soluções de mobilidade, para atender à alta demanda por deslocamento, levando em conta todas essas características.
E como resolver esse desafio?
Andrade: Temos o Plano Diretor da Cidade de São Paulo, de 2014, que se dedica quase que exclusivamente a enfrentar a questão da demanda por deslocamentos. Nele, o tema está estabelecido da seguinte forma: como as pessoas residem nas periferias e trabalham nas regiões centrais, então é preciso levar moradias ao centro e trabalho às áreas periféricas. Esse é, no meu entendimento, o resumo do plano, e, com base nisso, as ferramentas são estabelecidas.
Embora eu já tenha acreditado nessa ideia, hoje acho essa visão ingênua. As soluções são muito complexas para uma cidade como São Paulo, mas acredito ser fundamental entender e estudar os problemas.
E ver a cidade como policêntrica: somos um aglomerado urbano gigantesco, e isso demanda equilíbrios locais, ou seja, é preciso que se crie interesses regionais para que se possa quebrar o ciclo de que “tudo de melhor está no centro”. É necessário construirmos toda uma nova cultura urbana que prestigie outras centralidades.
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