‘Achar que tarifa zero só se paga com novos impostos é uma visão rasa’, diz professor da UFMG

A gratuidde total no transporte já é aplicada na cidade de São Caetano do Sul desde o final de 2023. Foto: Prefeitura de São Caetano do Sul

20/10/2025 - Tempo de leitura: 7 minutos, 8 segundos

Com o debate sobre a possível aplicação da tarifa zero nacional no sistema de transporte brasileiro avançando no governo após o pedido, feito em agosto, de estudo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é fundamental definir quais seriam as fontes de financiamento para a política pública. Especialistas do setor calculam que essa gratuidade universal custaria em torno de R$ 90 bilhões por ano.

Já existem vários estudos sobre o tema, entre eles o Vale-transporte: visão geral e passos possíveis para seu financiamento público. Elaborado em 2023, é resultado de um levantamento que contou com o apoio de um grupo de trabalho composto por alguns dos principais especialistas em mobilidade do País. Entre eles, Roberto Andrés, urbanista e professor da Escola de Arquitetura da UFMG, que conversou com o Mobilidade Estadão. A seguir, ele explica os detalhes do trabalho e como seria sua aplicação prática.

Roberto Andrés, urbanista e professor da UFMG. Foto: Acervo Pessoal

Procede a ideia de que a tarifa zero nacional exigiria novos impostos e que a população pagaria essa conta?

Roberto Andrés: A ideia de que a tarifa zero só se pagaria com mais impostos é uma visão rasa dessa questão. Hoje, temos uma forma de financiamento do transporte que é o vale-transporte, mas que é uma política muito mal desenhada, que faz com que vários segmentos empresariais paguem muito caro por ele, enquanto outros acabam não contribuindo.

Então, a questão não é mais ou menos impostos, mas sim como distribuir a contribuição das pessoas jurídicas de forma igualitária por toda a sociedade. Isso foi feito no estudo da Fundação Rosa Luxemburgo do qual participei e lá constatamos que seria possível arrecadar, com uma contribuição de R$ 200 por funcionário, mais de R$ 90 bilhões por ano.

Atualmente várias empresas gastam mais de vale-transporte do que esses R$ 200 propostos. Quem paga muito por esse benefício pagaria menos e quem hoje não contribui – o que inclui o setor público – ou contribui pouco, passaria a fazê-lo. Enxergamos que essa é uma avaliação mais aprofundada, que dá ‘zoom’ no problema e não olha somente por fora ou por cima.

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O senhor pode descrever qual é o conceito do estudo?

Quando o vale-transporte foi criado, ele foi inspirado em uma lei francesa que é o verssement transport (VSM) [atualmente chamado de versement mobilité, é uma contribuição de empresas com mais de 11 funcionários para o financiamento do transporte público local].

Mas, nos anos 1980, por diversas razões, o Brasil alterou essa legislação criando o vale-transporte como o conhecemos, que, na minha visão, é uma lei muito mal desenhada.

Ela tem vários problemas, é facultativa para o funcionário, debita uma parte do salário, desestimula a adesão de quem tem remuneração mais alta e vincula a contribuição da empresa ao valor da tarifa.

Isso é um contra-senso, porque se o município praticar uma boa política tarifária, um valor módico, como está estabelecido na Lei Nacional de Mobilidade Urbana, ele é penalizado com uma menor arrecadação das empresas.

Então, o que esse estudo faz é basicamente aplicar o modelo francês do VSM no Brasil. Nesse caso, teremos uma taxa fixa por funcionário, uma contribuição fixa, inclusive com um desconto para até 9 funcionários por empresa.

Essa contribuição permitiria, como já mencionei, uma contribuição de cerca de R$ 200 por funcionário ao mês, de todas as pessoas jurídicas do País, arrecadando mais de R$ 90 bilhões por ano.

Então, não é um imposto novo: o vale-transporte já existe, é uma substituição do vale-transporte, com uma distribuição em um modelo melhor estruturado e por todas as empresas. Porém, com uma contribuição menor do que muitas fazem hoje, mas para todas as empresas, permitindo arrecadar mais.

Quanto o vale-transporte representa hoje em percentual no financiamento do sistema?

Esse dado não é totalmente público. Temos um problema de transparência nesse sentido. Mas estimamos que, em muitas cidades, ele representa cerca de 40% da arrecadação do sistema de transporte.

Considerando o alto grau de informalidade no País, temos muitas pessoas que não são atendidas pelo vale-transporte. Como incluí-las?

Hoje quem não é atendido pelo vale-transporte é penalizado. Essas pessoas pagam a tarifa cheia no momento de deslocamento e muitos cidadãos são impedidos de circular. Quando se implementa a tarifa zero, essas pessoas passam a se deslocar pelas cidades.

E o que vemos nessa hora é a economia informal, mulheres, economia do cuidado, estudantes, vários segmentos que estão fora do esquema de trabalho CLT [com carteira assinada] podendo se deslocar pela cidade, exercendo seu direito. Direito de acesso ao território, à saúde, à educação, direito de procurar emprego, comércio, lazer, etc.

Dessa forma, o estudo do vale-transporte permitiria que, com os empregos formais que temos, fosse financiada a gratuidade para toda a sociedade, inclusive para quem não é CLT.

O estudo chegou em um valor necessário para a tarifa zero nacional (para todo o transporte público urbano, incluindo ônibus e trem?)

Estimamos que a tarifa zero no Brasil custaria cerca de R$ 80 a 90 bilhões por ano. Temos estimativas variadas nesse sentido. E a implementação do estudo demandaria uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que seria para a criação de uma contribuição.

Assim, com essa contribuição criada por uma PEC, a lei do vale-transporte precisaria ser extinta, porque nesse caso mudaria a forma de contribuição das empresas.

Quais seriam os benefícios da tarifa zero nacional?

Ela traria diversos benefícios para o País. Temos cidades em que as pessoas não conseguem circular, com muita deseconomia [falta de eficiência na utilização dos recursos produtivos, que se traduz em um aumento do custo médio de produção] urbana. Se você pegar todas as externalidades negativas do nosso modelo de deslocamento nos municípios, vemos que hoje em dia sai muito caro haver tarifas altíssimas para um sistema de transporte ruim.

Porque isso, de um lado, expulsa usuários do transporte público, aumentando o número de motocicletas e automóveis nas ruas, o que eleva também os congestionamentos e os acidentes. E, de outro, impede uma parte da sociedade de circular, de buscar empregos, educação, etc.

Nesse sentido, um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas mostra que as cidades com tarifa zero tiveram redução de emissões, ao mesmo tempo que aumentaram os empregos e as empresas. Ou seja, a economia da cidade funciona melhor.

Há muitos dados que mostram aumento nas vendas no comércio, porque o recurso que a população usava para pagar tarifa passa a ser levado para o consumo.

E vemos, também, mapeamentos que já mostram redução de trânsito. Como está acontecendo em São Caetano do Sul (SP), que estão mapeando junto ao Waze e demonstrando que o trânsito na cidade está diminuindo após a adoção da tarifa zero.

Tudo isso beneficiaria muito o País, não só nas questões ambiental e social, mas também na econômica, ao destravar a economia da cidade, permitir que as pessoas procurem emprego e facilitar a circulação de bens, de mercadorias e de pessoas no território.

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E como é o financiamento do transporte em outros países?

Nos países ricos, a regra é haver subsídios significativos para o transporte. Cada um tem uma fonte de financiamento diferente. Mas quando você olha para tarifas de € 1 a € 2 ou de US$ 1, é sabido que ela custou, em geral, € 2 ou US$ 3 a 4. Quer dizer, a maior parte do valor foi paga pelo governo com subsídio, geralmente estruturado a partir de uma fonte de recurso.

O modelo francês é mais interessante nesse sentido, porque ele estrutura uma contribuição das empresas, que não é alta. Mas quando é distribuída para todo mundo, é possível financiar o transporte público de toda a sociedade.

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