Ir e vir é um direito de todos os cidadãos, assegurado na Constituição Federal de 1988. Mas, na prática, sabe-se que o acesso à mobilidade varia muito dependendo de classe social, gênero, raça, idade, entre outras características. Para refletir sobre os motivos pelos quais os planejamentos das cidades, nesse campo da locomoção de maneira geral, precisam ter um olhar voltado para a redução das desigualdades, conversamos com Glaucia Pereira, fundadora da Multiplicidade Mobilidade Urbana, empresa especializada no tema. “A mobilidade precisa ser a ferramenta de acesso às cidades e aos serviços fundamentais e outros, não de exclusão”, afirma ela. Confira.
Glaucia Pereira: Nosso histórico nesse tema, no Brasil, foi construído em cima do sistema de trânsito, que tem como base a compartimentação. Falamos muito sobre tráfego, sobre veículos como carros ou ônibus e, até meados dos anos 2010, não contemplávamos a locomoção de uma maneira geral. Com a pauta da mobilidade urbana, passamos a entender que a cidade é feita para as pessoas e que todos esses modais, que eram separados, precisam ser compreendidos juntos, com a finalidade de melhorar a vida das pessoas.
Então, a mobilidade passa a ser vista como ferramenta de acesso às cidades e, quando começamos a estudar sob essa ótica, notamos desigualdades que já eram conhecidas na área das ciências sociais e que se repetem nesse campo. Embora a Política Nacional de Mobilidade Urbana tenha como conceito a redução das desigualdades, o que vemos, hoje, é que ela acaba reforçando e repactuando essas diferenças.
Glaucia: Um exemplo clássico está no fato de o sistema de transporte por ônibus ser planejado para um usuário padrão – que faz um trajeto casa–trabalho–trabalho–casa, um deslocamento linear – não contemplando outros públicos ou diferentes formas de deslocamento. A lógica é que esse usuário padrão saia de casa cedo, da periferia, vá ao trabalho, na região central, e retorne, no final do expediente. Isso define o planejamento das linhas e dos horários, não oferecendo a possibilidade de se fazer paradas ao longo desse trajeto.
Normalmente, esse usuário padrão é homem. Quando olhamos mais de perto para as viagens femininas, e focando nas mulheres negras e periféricas, notamos que as chamadas viagens de cuidado ainda recaem mais sobre elas, porque nossa sociedade ainda é machista. Então, está sob a responsabilidade delas a escola, as compras da casa, o cuidado com os filhos e outros parentes.
E os ônibus não foram projetados para isso, basta ver sua estrutura de degraus, que não está adaptada para crianças, idosos, para quem transporta bebê ou tem dificuldade de locomoção. Os horários também não acompanham esses “corres”, que acontecem fora do pico de uso, resultando em ônibus mais demorados e até inexistentes nas periferias aos finais de semana, caso de algumas linhas.
Um exemplo de como o sistema exclui ocorreu na vacinação contra a covid-19, com o esquema de drive-thru, ao considerar que toda a população possuía carro. Um estudo recente nosso mostrou que mais da metade das residências brasileiras tem um automóvel, mas, nos domicílios formados somente por pessoas negras, em mais de 70% deles não há nenhum carro.
Glaucia: Aqui, é importante trazer o conceito da interseccionalidade, porque a pessoa não é representada apenas por seu gênero, raça, condição física ou classe social: há um cruzamento entre todos esses aspectos. Então, se você é mulher, sofre algumas situações. Se é mulher e negra, vivencia outros tipos de restrição e preconceito. Se é negra e cadeirante, por exemplo, passa por outros.
Essas intersecções são construções, e temos também aspectos como orientação sexual, um recorte que impacta muito e acaba cerceando a locomoção das pessoas. As mulheres vivenciam isso também, por causa do assédio, ao escolher os trajetos que pensam ser mais seguros ou não saindo em alguns horários.
Glaucia: Temos exemplos pontuais, de alguns municípios do País. Fortaleza é um deles: a capital cearense investiu bastante em ciclovias, conseguindo, dessa forma, atingir, com um ano de antecedência, a meta de redução de mortes no trânsito estipulada pela ONU. Lá, há bem mais ciclovias nas periferias do que nas demais cidades do Brasil.
Mas ainda é comum vermos planos de mobilidade que consideram a cidade toda e que levam em conta o usuário padrão do sistema de transporte, demonstrando que a redução da desigualdade precisa entrar como uma pauta urgente de Política Pública.
Glaucia: No Brasil, as pessoas costumam andar de bike, mesmo antes das ciclovias. De acordo com um estudo nosso, temos, aproximadamente, 33 milhões de bicicletas, no País, e, nas capitais, elas são menos numerosas do que no interior. As ciclovias foram construídas pela necessidade de segregar espaço, para preservar a vida dos ciclistas, pois ainda não conseguimos ter uma convivência segura com os demais veículos.
É muito bom que as ciclovias existam, mas elas precisam estar, também, nos locais em que o uso da bike é mais intenso e onde as pessoas mais morrem nos acidentes de trânsito, nas periferias. Sabemos que esse modal não será para todos nem para todas as situações, mas quem puder utilizá-la vai precisar de equipamentos que facilitem essa integração.
Então, entendo que deveria ser uma realidade ter bicicletários em todas as estações de trem e de metrô e nos terminais de ônibus. Paraciclos, vestiários, toda a infraestrutura estimula o uso do modal, um transporte barato, sustentável, e que faz bem para as pessoas, mas as condições precisam ser mais favoráveis.