“O Brasil é o terceiro maior mercado de usados do mundo”

Roger Laughlin é cofundador e CEO da plataforma de vendas de veículos usados no Brasil; startup é a segunda mais valiosa da América Latina. Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

18/01/2022 - Tempo de leitura: 12 minutos, 5 segundos

Com ascendência irlandesa, Roger Laughlin nasceu na Venezuela há apenas 37 anos. Por causa da derrocada do país, sua família se mudou para a Argentina. Em 2016, ele morava no México e criou a Kavak juntamente com dois amigos.

Em 2020, a startup de compra e venda de carros usados ganhou status de “unicórnio” e atualmente está avaliada em US$ 8,7 bilhões. Com R$ 2,5 bilhões de investimentos, a empresa chegou ao Brasil em 2021, teve expansão meteórica e negociou mais de 13 mil veículos.

Por meio de chamada de vídeo, o CEO da Kavak no País concedeu a seguinte entrevista ao Estadão.

Como foi o desempenho da Kavac no Brasil em 2021?

Roger Laughlin: Foi incrível e superou todas as nossas expectativas. A gente chegou ao Brasil tendo como foco construir nossas bases, para garantir ganhos de escalar no futuro.

Sabíamos que o mercado é gigante e com grande movimentação. O País é o terceiro maior mercado do mundo em transação de carros usados. Está atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Nossa operação é complexa e exige muitos investimentos, infraestrutura e pessoal. Nossa meta era oferecer uma excelente experiência ao consumidor. Sobretudo porque esse é um mercado um pouco mais informal e a experiência de comprar e vender um carro pode ser complicada.

Além disso, trata-se de um mercado que mudou pouco nos últimos 50, 60 anos. A gente queria fazer as coisas bem feitas. Avançar rapidamente, mas sem atalhos. Quando você está tentando formalizar um mercado e trazer experiências com garantias, que gerem confiança, é muito importante construir uma boa reputação.

Especialmente hoje em dia, em que todo mundo é um microinfluenciador. Todo mundo tem rede social. Então, qualquer coisa que você faça, para bem ou para mal, pode ter um alcance enorme. Criamos a Kavac City (em Barueri, na Grande São Paulo), com o maior centro de recondicionamento de veículos da América Latina e a nossa maior loja global. Abrimos 20 lojas na cidade de São Paulo e chegamos a Campinas e Sorocaba.

Contratamos mais de 2 mil pessoas e fizemos isso de modo que fosse possível garantir treinamento e preparo suficientemente para que o time pudesse oferecer a nossa proposta de valor ao mercado. Fizemos ótimas parcerias para garantir opções de financiamento aos consumidores. Compramos mais de 13 mil carros para oferecer um amplo catálogo. A gente acaba focando muito o futuro e não olhando para trás e celebrando.

Porém, olhando para trás, o que a gente conquistou e fez é motivo de muito orgulho para Kavac. Mas isso é apenas o começo.

A aceleração da digitalização, que se intensificou por causa da pandemia, contribuiu para os bons resultados?

Laughlin: Foram vários os fatores. Mas, sem dúvida, sempre que há uma aceleração da digitalização, existe ganho. Nosso tipo de negócio é figital (une processos físicos e eletrônicos). Assim, a Kavak adapta muito sua proposta de valor conforme o tipo de consumidor.

De qualquer modo, quanto mais digital for o processo, mais eficiente ele é tanto para o consumidor quanto para a empresa. Além disso, garante chegar a mais pessoas de forma mais rápida.

A pandemia trouxe outras mudanças importantes na oferta e demanda. Como a produção de carros diminui, sobretudo por causa da falta de semicondutores, e o custo do novo subiu, muita gente migrou para os usados.

Além disso, há a questão da liquidez. Há pessoas que querem o dinheiro para comprar outro carro, um imóvel ou qualquer outra coisa. A gente conseguiu se posicionar como uma opção muito boa para atender essa demanda. Sem dúvida, isso fez acelerar a implantação da Kavac no Brasil.

Como você consegue oferecer benefícios como garantia de dois anos e IPVA grátis?

Laughlin: O mais importante é deixar claro que não somos apenas uma empresa que faz compra e venda de carros. Estamos muito interessados em acompanhar o cliente ao longo de toda a jornada dele como dono de um carro. A parte transacional é a primeira dor que a gente está solucionando.

Ela é a dor mais importante, porque a experiência de vender ou comprar um usado pode ser complicada. Então, nosso objetivo é ganhar a confiança do cliente. Depois, vamos investir nele e nessa jornada toda sendo dono de um carro comprado na Kavac. Esse é um negócio de longo prazo.

Queremos acompanhar o cliente desde o primeiro carro que ele compre na Kavac, até o último que ele venda daqui a, digamos, 50 anos. Também queremos democratizar o acesso à propriedade do carro, facilitar a experiência. O brasileiro troca de carro, em média, a cada cinco, sete anos. E faz isso por dois motivos.

O primeiro é que não faz sentido você vender um carro após um ano de uso por 30% a menos do que pagou. Ou por metade do valor após três anos. Então, ele acaba segurando o carro por mais tempo. Além disso, na hora da troca a preferência acaba sendo pelo novo, por causa da falta de confiança no mercado de usados.

“O brasileiro troca de carro a cada cinco, sete anos. E a preferência pelo novo é resultado da falta de confiança no setor de usados.” Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Então, o consumidor não quer trocar de carro, só troca porque precisa?

Laughlin: Ele quer trocar, mas fica com pé atrás para entrar no mercado de usados. Isso acontece justamente por causa da informalidade e de alguns outros problemas. Se a experiência for ruim, ele vai demorar a voltar a fazer negócio. Mas não faz sentido a pessoa ficar sete anos com um carro. Nos EUA e na Europa, as pessoas trocam de carro a cada dois anos.

O que a Kavac quer é oferecer uma boa experiência e simplificar o processo, de modo que a gente consiga mudar esse comportamento para que o brasileiro troque de carro a cada um, dois ou três anos ou no tempo que ele quiser. Que esse intervalo não seja resultado de um negócio ruim.

Geralmente, no segundo ou terceiro ano de uso, o carro que você tem já não é o que você precisa naquele momento. Então, a gente está construindo uma proposta de valor pensando no futuro, nessa jornada, e não necessariamente no dinheiro que a gente vai ganhar nessa primeira transação.

A Kavak é uma solução moderna para um comportamento antigo, que é ter a propriedade do carro. Como você vê a locação, a assinatura e o carro compartilhado?

Laughlin: A gente desenha nossa proposta de valor e a nossa tecnologia, pensando no futuro. Pensamos no usuário e na relação que as pessoas têm com o carro. Há duas jornadas: a do cliente e a do próprio carro.

Em algum momento, elas terão uma intersecção, seja no modelo de propriedade, locação ou compartilhamento. A Kavak está construindo um negócio de assinatura tanto tecnológico quanto físico, que serve o mercado do presente e também vai servir no futuro.

Atualmente, 95% do mercado quer a propriedade. Então, estamos construindo uma forma de alcançar mais pessoas. Seja como for, estamos nos preparando para mudar, caso isso seja necessário.

A gente acredita que o modelo de assinatura com propriedade é o mais interessante, e é isso que oferecemos. Quem contrata um financiamento com a Kavak pode trocar de carro a cada um, dois anos.

Quais são as metas para 2022 e os passos para alcançá-las?

Laughlin: O ano de 2022 será de crescimento, de aumento de escala e de colher os frutos dos investimentos feitos em 2021. Também será um ano de expansão pelo Brasil.

Em 2021, nosso foco era consolidar o negócio em São Paulo. Agora, vamos continuar crescendo em São Paulo e, ao mesmo tempo, avançar para outras cidades e regiões do Brasil de modo a alcançar mais brasileiros. Não posso falar sobre cidades, regiões e datas. Mas logo você vai ver a Kavak chegando a outras partes do País.

Há planos de expandir o negócio para outros mercados, como os Estados Unidos e a Europa?

Laughlin: Há, sim. A Kavak é uma empresa global e o propósito é levar nossa proposta de valor à maior quantidade possível de consumidores. Porém, no momento, os EUA e a Europa não são interessantes para nós.

A gente prefere mercados complexos, onde haja muita coisa para solucionar, possamos ser importantes e fazer transformações. Há alguns em que a gente está começando a entrar, mas ainda não posso anunciar. Seja como for, vamos expandir a Kavak na América Latina e também para outros continentes.

“O cliente satisfeito acaba virando um promotores da Kavak e isso vira uma bola de neve positiva.” Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Você disse que comprou 13 mil carros em 2021. Para onde eles vão?

Laughlin: Vão para clientes que querem comprar um carro. Ou seja, viram parte do nosso catálogo. A gente compra de pessoas físicas. Todos passam por um processo de recondicionamento para poderem ganhar certificação e garantia de dois anos.

Feito isso, as ofertas são publicadas no nosso site e vão para uma das lojas, onde ficam até serem vendidos. Nosso propósito em 2021 era ter um amplo inventário. Por isso, estamos sendo menos agressivos na compra em 2022.

Com a alta dor preços, dos juros e o risco de inflação, como essa conta vai fechar?

Laughlin: Temos de focar no que a gente pode controlar. Ou seja, temos de oferecer uma ótima experiência ao consumidor. Se a gente fizer isso, o crescimento será orgânico. O cliente satisfeito acaba virando um promotores da Kavak e isso vira uma bola de neve positiva.

O nosso algoritmo de comércio vem sendo construído há seis anos e está desenhando para acompanhar as oscilações do mercado. Se a oferta aumentar ou diminuir, a procura pelo modelo “x” ou por planos de financiamento aumentar, estamos preparados para atender.

Hoje, podemos controlar e garantir que estamos fazendo um grande trabalho para o consumidor. Afinal, é o cliente quem paga nossas contas. Se oferecermos uma boa experiência para ele e para nossos funcionários, as coisas vão funcionar e a gente vai crescer.

Mesmo na pandemia, que é uma das piores crises que o mundo já vivenciou, a gente vê a resiliência do mercado de usados e a importância que esse ativo tem para as pessoas. Então, estamos muito confiantes e preparados para atender novas demandas.

Se você pudesse mandar uma dica para o Roger de 20 anos atrás, quando você ainda não sabia exatamente o que iria fazer da vida, qual seria?

Laughlin: Eu diria: “Compre ações da Netflix (risos)!. É engraçado, porque, às vezes, brincamos com essa pergunta, fazemos esse tipo de reflexão. Eu não mudaria nada.

Estou aqui justamente por causa dessa experiência de vida, porque tive de sair do meu país, morar em outros lugares. Vivi experiências que não trocaria por nada. Sou casado e feliz com um filho venezuelano/mexicano/brasileiro. Então, estou no lugar certo no momento certo.

Eu diria: “Roger, continue nessa vida. Faça o que você quiser fazer.”
 
Ter experiência em várias áreas diferentes, lugares e culturas faz a diferença?

Laughlin: Não creio que exista uma fórmula. Cada um tem de trilhar seu próprio caminho. Tive de sair da Venezuela, fui para a Argentina, Brasil e depois para o México. Sempre me senti como um cidadão da América Latina, e, cada vez mais, do mundo.

A experiência no Groupon me ensinou muito sobre a capacidade que os seres humanos têm para fazer qualquer coisa. Seja você um brasileiro, venezuelano ou mexicano. Mas a mente humana pode ficar limitada por questões geográficas. Dá para sonhar grande, fazer coisas independentemente de onde você estiver. A Kavak nasceu no México porque a gente entendeu que estava no mercado ideal para construir a empresa. Ao mesmo tempo, a gente nunca pensou no México como nosso único mercado, nunca pusemos limites para o que a Kavak poderia ser.

Sempre pensamos em como solucionar problemas, conhecer o consumidor e construir uma proposta de valor. Nosso foco era entender onde a gente queria chegar e fomos muito pragmáticos. A experiência multicultural me ensinou como não fazer as coisas, bem como a importância da construção de bases sólidas, de as pessoas entenderem o que elas estão fazendo. A gente procura muito esse tipo de experiência na Kavak. Ou seja, as pessoas não precisam ter experiências multiculturais, mas buscamos quem já fez muitas coisas, que têm uma curva de aprendizado interno e tomar decisões de impacto porque têm vivência.

Seja no Brasil ou em outros países, buscamos pessoas com histórias de vida interessantes, independentemente do que fizeram, que tenham cicatrizes e coisas legais para contar.

Houve alguma decisão que você tomou em 2021 que, se pudesse, mudaria?

Laughlin: Falamos muito sobre isso na Kavak. A gente fala muito em tentar ficar no presente. Você não pode mudar o passado. Se ficar preso ao passado, não vai conseguir mudar o presente. O futuro é algo para ser pensado na hora do planejamento, de se preparar.

Então, a gente fala na Kavak do formato 24 horas, que faz parte do nosso credo. Assim, focamos o que temos para fazer em 24 horas, que é algo que está no presente. Seja o melhor que você puder ser nas próximas 24 horas.

Depois você pensa nas 24 horas que virão. Cometi muitos erros no passado e há muita coisa que gostaria de ter feito de forma diferente. Porém, não fico pensando nisso.

Você deve aproveitar as experiências, o que aconteceu. Porém, não pode ficar preso no passado. Seja como for, estou muito orgulhoso do que fizemos ano passado. O ano de 2021 foi repleto de acontecimentos que me ajudaram a aprender muito. Assim, coloquei tudo que aprendi no planejamento de 2022.