O futuro da mobilidade

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Daniela Saragiotto
17/04/2020 - Tempo de leitura: 10 minutos, 15 segundos

Como prever o que vai acontecer daqui a alguns anos em um segmento que tem o movimento em sua essência? Para encontrar pistas sobre como será a mobilidade no futuro e como ela irá afetar nossas vidas, o Boston Consulting Group (BCG) desenvolveu o estudo A Nova Realidade da Mobilidade no Brasil.

Foram entrevistadas mais de 2 mil pessoas, de diferentes regiões do País, idades e classes sociais, em um esforço para traçar um panorama local do tema, que teve enorme evolução principalmente nos últimos cinco anos.

Transformações rápidas

A velocidade com que alguns comportamentos têm sido incorporados em nossa sociedade impressiona: a pesquisa revelou, por exemplo, que 55,6% dos brasileiros das classes A, B e C já utilizam aplicativos de transporte individual pelo menos uma vez por semana, modal definido no estudo como ride sharing, ou veículos particulares acionados para transporte de passageiros.

Os carros elétricos e autônomos também se destacam no estudo, principalmente como alternativas viáveis e não tão distantes de serem implementadas para melhorar a circulação nos grandes centros e devolver para as pessoas o que a falta de mobilidade rouba delas: tempo, mais segurança no trânsito e uma melhor qualidade do ar.

E, como se o desafio de entender a mobilidade já não fosse uma tarefa desafiadora o bastante, pouco depois da realização do estudo veio a pandemia do novo coronavírus (covid-19), colocando o Brasil e o mundo em isolamento e mudando, mais uma vez, a dinâmica da nossa sociedade. Confira, a seguir, algumas reflexões de Regis Nieto, sócio e colíder da prática de Indústria Automotiva & Mobilidade do BCG Brasil, e um dos responsáveis pelo estudo.

Regis Nieto, sócio e colíder da prática de Indústria Automotiva & Mobilidade do BCG. Foto: Divulgação.

Por que o BCG decidiu fazer esse estudo?

Regis Nieto: Nós estudamos esse tema há muitos anos. Temos apoiado montadoras, locadoras e cidades inteiras a repensar sua mobilidade. Um dos estudos mais conhecidos que fizemos, que é público, foi para a cidade Boston (EUA) para que eles pudessem se preparar para o futuro, fazendo inclusive modelagem de tráfego por bairros.

Então, decidimos que era hora de fazer algo para o Brasil, por causa da relevância do tema e os avanços que temos registrado. Se pensarmos em quatro ou cinco anos atrás, pouco se falava e pouco se fazia em mobilidade no Brasil. Então, esse é o primeiro relatório específico do tema, por conta da sua importância e das mudanças no cenário do País.

Você costuma dizer que precisamos resolver o desafio da mobilidade. O que isso significa?

Nieto: O custo da falta de mobilidade ou de como ela é feita hoje – e aqui não estou falando apenas de Brasil mas do mundo todo – é muito alto. As pessoas perdem muito tempo tentando chegar a seus destinos e isso poderia ser usado de uma maneira mais inteligente. Temos exemplos de cidades na China em que as pessoas levam seis horas por dia em seus trajetos e isso ocorre no Brasil também. Todo esse tempo poderia ser convertido em produtividade ou em bem-estar.

O custo econômico e social da falta da mobilidade ou da ineficiência dela é desastroso. E, quando falamos nas consequências da mobilidade, por exemplo, pensamos também nos acidentes ou mortes no trânsito, com um custo social enorme.

Levando em conta o modelo brasileiro, de veículos com motores a combustão, temos uma poluição que é muito concentrada nos grandes centros urbanos, em que a densidade populacional é maior e isso impacta negativamente a saúde respiratória da população. Então, quando pensamos em todos esses desafios, entendemos por que a mobilidade deve estar no topo das prioridades para nossa sociedade.

O que mudou na mobilidade do Brasil nos últimos cinco anos?

Nieto: Nós já esperávamos que a forma como as pessoas se locomovem mudasse nos últimos anos, mas o que mais chama a atenção é a penetração desse novo meio de transporte, que chamamos de ride sharing, ou transporte por aplicativo em veículos particulares, que já representa 55,6% da população brasileira. Então, notamos que esse novo modal começa a se transformar em uma das formas de transportes mais utilizadas do Brasil, em linha com o carro próprio e não tão distante do transporte público.

Pela pesquisa, concluímos que mais de 50% das pessoas utilizam pelo menos uma vez por semana esse modelo. Isso é surpreendente, sobretudo pela sua difusão pelas diferentes regiões do Brasil, classes sociais, gêneros e faixas etárias. A praticidade é um dos fatores principais: as pessoas sabem que, em três ou quatro minutos, terão um transporte à sua disposição. É um fenômeno muito interessante, principalmente pela rapidez com que se espalhou pelo País.

Carros elétricos: forte tendência para os próximos anos. Foto: Getty Images.

O que podemos esperar de inovações nos automóveis até 2030?

Nieto: Daqui a dez anos, o cenário vai estar muito diferente. Existem dois fenômenos tecnológicos que destaco: a eletrificação dos carros e os veículos autônomos. A eletrificação está começando, e já existem nas ruas carros elétricos ou híbridos. Ainda são poucos, mas têm aumentado rapidamente; neste ano, deveremos ter alguns lançamentos (de elétricos e híbridos) e eles terão adesão cada vez maior à medida que conseguirem baixar o valor das baterias, que ainda é o principal gargalo.

Eles ainda são mais caros, mas acredito que ficarão cada vez mais acessíveis. E, em relação aos autônomos, fica muito interessante analisar a combinação entre eles e os elétricos. O carro elétrico autônomo é mais caro, porque essa tecnologia ainda tem alto custo. Mas o custo operacional do carro autônomo, ou seja, seu custo por quilômetro rodado, é bem mais baixo. Quando você pensa em um carro compartilhado, é natural que o principal custo de uma corrida seja para remunerar o motorista.

Mas, quando consideramos um elétrico autônomo, nós eliminamos esse custo da equação. O fato de esse veículo ser mais barato para rodar e mais caro para ser adquirido e, consequentemente, para ficar parado na garagem, acaba forçando o compartilhamento. Então, essas três tendências – carro elétrico, autônomo e compartilhado – se complementam e vão transformar o panorama da mobilidade no Brasil e no mundo.

Autônomos: veículos que ‘liberam’ o condutor para outras atividades. Foto: Getty Images.

Como resolver a questão dos congestionamentos nas metrópoles?

Nieto: Existem vários fatores que devem ser resolvidos ou repensados. A mobilidade é intrínseca ao ser humano e já estamos sentindo como a falta dela nos dói. No final das contas, o mais importante é o uso eficiente do espaço destinado à mobilidade.

Esse é o principal fundamento, mas existem outros. Por exemplo, quando o carro autônomo chegar, ele vai se comportar de maneira bem mais racional: ele não vai parar em fila dupla, ele não comete infrações de trânsito e, por ser elétrico, ele provavelmente irá quebrar menos. Dessa forma, ele libera espaço nas ruas, o devolvendo para as pessoas ou para o tráfego, e a tendência é que a mobilidade melhore.

Hoje, temos vários carros parados ou estacionados nas ruas, ocupando muito espaço ou metade do espaço em algumas vias mais estreitas. Quando você pensa nos autônomos, eles não precisam ficar parados no meio da cidade, eles podem ir sozinhos para áreas de baixa densidade populacional. Isso devolve espaço da cidade para circulação ou para a população.

Se continuarmos tendo esse conceito de um carro por pessoa, ou, no máximo, duas pessoas por veículo, nunca conseguiremos resolver a
equação dos congestionamentos. O segredo é combinar esses fatores que eu mencionei com uma densidade razoável e atratividade no transporte público, oferecendo incentivos para que não tenhamos uma só pessoa por carro, de maneira a obter maior densidade e o melhor uso do espaço destinado ao transporte. Se conseguirmos chegar a esse ponto, a vida das pessoas vai melhorar bastante.

O que é mobilidade perfeita?

Nieto: Na minha visão, ela é uma combinação de alguns fatores fundamentais. A mobilidade perfeita é limpa ou tão limpa quanto seja possível. Ela é segura: acredito que o conceito de zero mortes no trânsito em dez anos seja uma ambição que temos de perseguir. Ela é eficiente, ou seja, ela diminui o tempo que as pessoas levam para chegar a seus destinos. E, junto com a eficiência, ela dá opção de devolver o tempo de transporte, ou seja, eu posso ter um tempo produtivo nos meus deslocamentos, pois tenho a opção de não dirigir, posso falar com amigos, posso ler um livro, posso assistir a um filme, posso dormir ou posso trabalhar.

Embora a gente ainda esteja no “olho do furacão da pandemia”, já é possível traçar alguns cenários sobre seus impactos na mobilidade global nos próximos anos?

Nieto: Ainda é muito difícil fazer previsões nesse sentido, mas podemos
partir do que já sabemos. Alguns comportamentos do consumidor vão mudar, e um sentimento de aversão aos locais cheios provavelmente será um dos principais, acompanhado de um maior cuidado com a limpeza.

E isso tem implicações no transporte público: quando pensamos na “lata de sardinha”, que é como as pessoas definem as viagens de ônibus e de metrô, sobretudo nos grandes centros, existe uma chance de migração de uma parcela da população para outras formas de transporte. E toda vez que as pessoas deixam de usar o transporte público o trânsito aumenta.

Outro ponto é que muitos indivíduos que estavam pensando em vender seu carro pessoal para migrar para o ride sharing talvez, neste momento, desistam de usar um carro que é compartilhado com outras pessoas. São hipóteses, mas já vemos iniciativas do transporte público, por exemplo, para atrair os usuários de volta, medidas para retomar a confiança da população.

Na Espanha, em regiões que estão fazendo testes para diminuir gradativamente o lockdow, estão distribuindo máscaras no embarque de passageiros de ônibus. Outro ponto é que, muito provavelmente, a demanda por transporte talvez diminua na comparação com a que tínhamos antes do isolamento.

O que estamos vivendo é um grande experimento de como o mundo pode funcionar de outra forma e muitas pessoas, cujas profissões permitem, estão conseguindo manter suas rotinas de trabalho em regime de home office. Para muitas companhias, isso já era praticado uma vez por semana, mas, agora, não há motivos para que essa prática não seja estendida para dois ou três dias por semana, por exemplo.

Isso também acontece com o aumento das entregas em domicílio, quando outros modais entram em operação, como bicicleta, scooter, patinete e outros. É possível que o ponto de equilíbrio da mobilidade no Brasil e no mundo mude bastante após esta fase.

Como a indústria automotiva e sua cadeia produtiva vão sair dessa crise no curto e no médio prazo? A indústria estava preparada para esse baque?

Nieto: Nenhuma indústria – em nenhum lugar do mundo – estava preparada; esse é até um questionamento injusto. Isso nunca aconteceu e ninguém poderia imaginar algo dessa natureza. Nossa indústria automotiva tem uma boa capacidade para enfrentar crises, é relativamente robusta e, nos últimos anos, já foram tomadas diversas medidas para melhorar sua eficiência.

Acredito que os primeiros três meses serão os mais complicados: continuaremos vendo funcionários em férias coletivas, é importante que as montadoras continuem garantindo a sobrevivência de seus dealers tomando decisões para resolver custos variáveis no curto prazo e projetando a produção para o futuro. Mas não acredito que haverá um
problema de longo prazo.