Os espaços públicos preenchem, com vida, os vazios entre o concreto das cidades. É o local onde a convivência coletiva se manifesta, as conexões interpessoais são criadas e, aos poucos, a vocação de cada espaço é construída por quem nele convive.
Nesse processo de trocas de relações humanas, as contradições da cidade e da sociedade[1] se revelam. E como resultado desse processo, manifestam-se as polêmicas sobre estátuas e nomes de ruas e do mobiliário urbano. Sobretudo nos últimos anos, é cada vez mais comum surgirem perguntas do tipo: como identificar se uma estátua merece na praça? Uma personalidade merece ser representada num monumento público? E, talvez mais importante, aquela vizinhança se reconhece naquela estátua?
Laurentino Gomes, em seu primeiro volume da trilogia Escravidão, conta episódio dos anos 1990 pouco conhecido sobre uma estátua de Catarina de Bragança, rainha-consorte da Inglaterra durante o século XVII. Segundo o escritor, a estátua foi parar no Parque das Nações, à beira do Tejo, em Lisboa, porque ninguém mais a queria em parte alguma.
Foi concebida originalmente para ter a metade da altura da imagem do Cristo Redentor e, na cidade de Nova Iorque, perderia em tamanho apenas para a Estátua da Liberdade. Lá estaria de frente para o prédio da ONU, no Queens, não fosse a vontade popular.
Quando os britânicos tomaram a região de Manhattan dos holandeses, a margem esquerda do East River passou a ser chamada de Queen’s County, em homenagem a Catarina de Bragança. Assim, parecia fazer sentido que a estátua da rainha-consorte ficasse no bairro nomeado em sua homenagem.
O Queens atualmente é um bairro multicultural que abriga imigrantes e descendentes de variadas nacionalidades, incluindo africanos e portugueses. Ainda no final dos anos 1980, os portugueses levantaram recursos para o projeto. Ativistas do movimento negro norte-amaricano, historiadores, intelectuais e representantes da sociedade, contudo, se opuseram. Alegavam que a rainha havia se beneficiado da escravidão e, portanto, não merecia ser homenageada. E não foi. Pelo menos não no Queens dos anos 1990.
Audrey Flack, artista plástica vencedora do concurso para a criação da estátua, ao ser entrevistada pelo The New York Times sobre a polêmica que a levou a abandonar o projeto, disse ser “este um trabalho que poderia ser utilizado para iniciar conversas, e não deveríamos nos assustar com isso”[2]. Enfim, a polêmica deveria ser o início, e não o fim.
O bairro do Queens escolheu não homenagear Catarina de Bragança, mas também não deu qualquer significado ao espaço público onde a estátua ficaria. Para a construção de cidades antirracistas, não basta derrubar monumentos públicos que remetem a um passado vergonhoso da História.
É preciso criar representações artísticas sobre as reflexões atuais. Por que não conceber manifestações artísticas sobre a polêmica? A própria Catarina de Bragança poderia fazer parte dessas manifestações, talvez não como uma homenageada, mas sim como beneficiária da escravidão. Ou talvez como uma estátua que foi impedida de ali figurar. Isso certamente criaria um espaço público representativo do debate atual e cidades antirracistas. Não fazer nada é abdicar do espaço público e da luta contra o racismo.
[1] SCHMITT Caccia, Lara. Mobilidade urbana: políticas públicas e apropriação do espaço em cidades brasileiras. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Geociências Programa de Pós-Graduação em Geografia. Porto Alegre, 2015, p. 148.
[1] The New York Times, “The statue that Never Was”, 09.11.2017, disponível em https://www.nytimes.com/2017/11/09/nyregion/the-statue-that-never-was.html
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