Foi de forma discreta que a ciclovia da Paulista oficialmente saiu do papel. Na noite do domingo, 4 de janeiro de 2015, quando o movimento na avenida já estava bem baixo, os primeiros tapumes que anunciavam o início das obras foram colocados.
Durante a madrugada seguinte, no entanto, a notícia se espalhou nas redes sociais e na segunda-feira um grupo de ciclistas apareceu para comemorar de forma bem humorada: com uma pajelança regada a espumante e bolo de festa. Alguns também jogaram sal grosso no canteiro de obras, alegando trazer sorte e espantar o mal olhado de quem se opunha ao tapete vermelho.
Os supersticiosos logo descobririam que a quantidade de sal não havia sido suficiente. Em março, com a construção à toda, uma ação do Ministério Público Estadual encabeçada pela promotora Camila Mansour, barrou a construção de todas as ciclovias na cidade, com o pedido de que a obra na Paulista fosse desfeita e a os trechos modificados voltassem a ser como antes.
Trecho da petição da promotora Camila Mansour
Na ação, a promotora alegava não terem sido realizados estudos de viabilidade técnica e que a obra causava riscos aos motoristas. Também citava pareceres de engenheiros, feitos a pedido do órgão, segundo os quais a região da Paulista já teria transporte coletivo suficiente e, nesse caso, a bicicleta acabaria por competir com os demais modais.
Um juiz da primeira instância acatou parte do pedido da promotora: vetou a instalação de novas ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas na cidade – para as quais exigiu estudos de impacto viário –, mas liberou as obras da Paulista.
A reação foi rápida. A Prefeitura entrou com pedido para suspender a liminar e os ciclistas reunidos em mais de 20 associações divulgaram uma nota na qual afirmaram não aceitar “nenhum passo no sentido contrário ao de uma cidade mais ciclável, humana, inclusiva e justa”. Uma semana depois, na noite da sexta-feira 27 de março, foi a vez de ocuparem a Paulista para reivindicar que a cidade continuasse a ganhar ciclovias.
Cerca de 7 mil ciclistas tomaram conta da avenida, em um movimento acompanhando por outros milhares em 45 cidades do Brasil e de países como Alemanha, Argentina, EUA, Inglaterra e Espanha.
Foi durante essa Bicicletada histórica que a boa notícia chegou: o Tribunal de Justiça de São Paulo havia derrubado a liminar que suspendia as obras para implementação de ciclovias. Imediatamente, os manifestantes comemoraram a decisão com um grito de guerra bem irônico: “Ô, promotora, vem pedalar! Pega uma bike que caiu a liminar!”.
Com a retomada do trabalho, as equipes se revezaram ininterruptamente – 24 horas por dia –, sempre com a responsabilidade de atuar com precisão extrema. Na construção dos dutos de fibra ótica, por exemplo, não se podia correr qualquer risco de cortar um cabeamento que fornecesse energia para hospitais ou bancos, abundantes por ali. Isso porque, apesar de a via ter sido requalificada anos antes, em 2007, as informações sobre a localização de estruturas como redes de gás ou água não estavam disponíveis. Logo, antes de usar um equipamento de perfuração, era necessário fazer um trabalho manual de sondagem do solo.
Trabalhar com maquinários na avenida mais famosa da cidade também exigiu um malabarismo logístico: os entulhos poderiam ser retirados durante a madrugada, mas a entrega de concreto tinha de ser durante o dia, até pela validade curta do material.
Semanalmente, cerca de 30 funcionários da CET, da SPTrans e do consórcio contratado se reuniam para debater cada etapa do processo. O tom de vermelho, por exemplo, foi o resultado de várias provas in loco: um fica muito claro, outro muito escuro. Foi somente após um dia de ensaios no laboratório que se chegou à nuance ideal. Se houvesse dúvida ou falta de consenso em determinado ponto, a reunião se estendia para o campo e só terminava quando tudo estivesse elucidado.
Num canteiro de obras extenso e público, foi também preciso um planejamento para preservar a própria estrutura de trabalho. A iluminação dos tapumes, por exemplo, foi furtada várias vezes. E os próprios tapumes tiveram de ser fixados para evitar que fossem utilizados como instrumentos de vandalismo nas muitas manifestações que ocuparam a avenida durante aquele período.
A primeira delas aconteceu na primeira semana de trabalho e um tanto delas se sucederam pelos meses seguintes. A solução foi definir uma equipe de atuação nos dias de protesto e estabelecer procedimentos: para evitar que ferros, madeiras e pedras da construção pudessem servir de arsenal para os exaltados, os tapumes eram travados e todo material que pudesse servir de arma era retirado. A estratégia funcionou. Só não conseguiu impedir que o vermelho da ciclovia fosse pichado em um dos atos na avenida. Nada que uma boa lavagem não trouxesse de volta a cor do concreto pigmentado.
Também foi simples retirar o vermelho que tingiu as faixas de rolamento após uma chuva no decorrer da obra. Quando o quarteirão entre as alamedas Casa Branca e Peixoto Gomide amanheceu com o asfalto avermelhado, houve quem dissesse que a tinta da ciclovia havia escorrido. Equívoco. Nenhuma gota de tinta foi usada ali. O concreto já foi aplicado com a pigmentação vermelha e o que sujou o entorno foi sobra de material em forma de pó na superfície. Com a chuva, ele se espalhou. Bastou lavar e estava tudo em ordem outra vez.
No principal cartão postal da cidade, cada centímetro da obra era formal e informalmente fiscalizado. Das demandas do Tribunal de Contas do Município – que acompanhou in loco a evolução do trabalho – aos cidadãos que queriam entender o procedimento em detalhes. Por que foi quebrado um pedaço daquela calçada? É certeza que espaço para o pedestre será suficiente nas ilhas?
Na avenida Bernardino de Campos, como imaginado, o trabalho foi bem mais complicado. No alto dos postes, em um trecho de menos de cem metros, foram encontradas mais de 70 caixas de fiação. Antes de retirá-las para fazer o aterramento dos fios, foi preciso contatar cada uma das empresas. E sempre sobrava um cabo sem identificação. E se fosse de um banco ou de um semáforo? No subsolo da avenida, quanto mais se escavava, mais dutos eram encontrados.
Os trabalhadores tinham de lidar também com inúmeras reclamações, pois os transtornos causados pelo trabalho na Bernardino eram proporcionais à dimensão da construção. Entretanto, a obra conseguiu conquistar a solidariedade de muitos. Alguns comerciantes entenderam que a quebradeira era provisória e que a fachada dos estabelecimentos ficaria mais agradável após o enterramento da fiação. Ciclistas que passavam todos os dias para “namorar” a ciclovia em construção sempre ofereciam ajuda ou chegavam ao canteiro com café e bolo. “Eu, que nunca tinha ouvido falar em cicloativista, vi que existiam e que eram muito solícitos”, brincou um funcionário da SPTrans.
Segundo uma pesquisa da CET, o número de ciclistas que passou a circular na Avenida Paulista durante a realização das obras da ciclovia subiu 51% no período da manhã, entre 7h e 10h, e 30% no período da tarde, entre 16h e 19h. Nos últimos dias antes da inauguração, já com parte dos tapumes retirados, o espaço se tornou um aperitivo. Enquanto a equipe de obra fazia os últimos reparos, os ciclistas já circulavam pela estrutura.
Funcionários com lixas nas mãos cuidavam para que as guias não ficassem manchadas de vermelho ou com sujeira da obra. Na véspera, com spray amarelo em mãos, os próprios gestores ajudavam a pintar os últimos paraciclos que foram instalados ao longo da via.
Na madrugada da inauguração, um supervisor decidiu sair de casa para dar uma última conferida quando, acidentalmente, viu um trecho da ciclovia tingido de azul. A obra havia sido vandalizada. Preocupado, o gestor encontrou a solução rapidamente: pediu a funcionários da prefeitura que limpavam o asfalto para lavar também a ciclovia. Por sorte, a tinta era solúvel em água e saiu facilmente. Afinal, na manhã seguinte, tudo tinha de estar como o previsto naquele projeto tão aguardado.
____________________________________________
Na próxima semana: a festa de inauguração da ciclovia