A Constituição Federal de 1988 estabelece que o transporte público coletivo urbano é atribuição dos poderes públicos municipais, responsáveis pelo seu planejamento, implementação e gestão — o que inclui o próprio financiamento do serviço. No Brasil, o modelo adotado na quase totalidade dos 2.703 municípios que contam com sistemas organizados de transporte público é o da prestação do serviço por empresas operadoras privadas, por meio de contratos de concessão. O mesmo vale para os governos estaduais, responsáveis pelo transporte urbano e de caráter urbano nas Regiões Metropolitanas.
Essa descentralização leva, na prática, a uma pulverização de padrões e de soluções, com custos e qualidades muito desiguais e alto índice de insatisfação por parte dos passageiros. Cada ente da federação estabelece as suas próprias regras para a organização desses serviços, gerando confusão e desordem nos direitos e obrigações dos poderes concedentes e das empresas concessionárias, salvo exceções.
A chamada “legislação aplicável” aos transportes coletivos – um amontoado de leis federais, estaduais e municipais – cria, em muitos casos, embaraços e amarras que só dificultam a contratação e a gestão dos contratos de prestação dos serviços. Em algumas situações, o aparato jurídico é falho, dúbio e não estabelece base suficientemente sólida para que os contratos possam resistir, inclusive, a ataques de judicialização. Não há um direcionamento único e regras gerais que organizem e respaldem o funcionamento desse setor, apesar da sua importância econômica e social.
Mesmo depois de 2015, quando o transporte passou a fazer parte dos direitos sociais, previstos no Art. 6º da Constituição Federal, muito pouco se fez para consolidar o direito do cidadão, o dever do Estado e o papel das empresas operadoras no âmbito dos transportes públicos. Fica, para a sociedade, a impressão de que o transporte coletivo é um negócio, regido por leis de mercado, e não um serviço público, de total responsabilidade do Estado.
O setor já vinha passando por dificuldades, mesmo antes da pandemia. Porém, somente nos últimos dois anos, ocorreram mais de 300 paralisações ou movimentos grevistas, dezenas de interrupções e encerramento da prestação dos serviços, bem como a insolvência de várias empresas operadoras, retratos de um segmento que já acumula perdas de mais de R$ 27 bilhões, decorrentes da drástica queda de demanda observada durante a pandemia da Covid-19. Temos aqui fortes indicadores da necessidade urgente de mudanças.
A criação de um marco legal, abrangente e detalhado, que estabeleça regras claras e efetivas, é a melhor resposta para esse desafio. Trata-se de reforma estrutural de longo prazo, necessária e profunda, que permitirá, também, rever e atualizar toda a legislação aplicável nas três esferas de governo, de modo a atender à maioria das necessidades atuais e futuras do transporte público multimodal (ônibus, barco, metrô e trem).
Muitas das propostas para um novo marco legal do transporte público, inspiradas em bem-sucedidos modelos regulatórios recentes, foram longamente debatidas por entidades do setor de transportes e de defesa dos direitos do cidadão, e estão contempladas em projeto de lei que tramita no Senado Federal (PL 3278/21, de autoria do ex-senador Antonio Anastasia-MG).
O projeto define um novo modelo de contratação capaz de melhorar a qualidade na prestação dos serviços e, ao mesmo tempo, reduzir o peso da tarifa no bolso do passageiro. O cerne da proposta, já previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, mas nunca implementado, é a separação entre tarifa de remuneração (paga aos operadores e suficiente para cobrir os custos da prestação do serviço) e tarifa pública (paga pelo passageiro para a utilização dos serviços oferecidos), com a diferença sendo coberta por recursos orçamentários ou outras fontes extratarifárias – modelo, aliás, praticado pelos países que oferecem transporte público de primeiro mundo. A proposta inclui ainda princípios e conceitos relativos ao acesso universal aos serviços, desenvolvimento sustentável, segurança nos deslocamentos, prioridade do transporte coletivo sobre o individual, promoção da inclusão social e a necessidade de publicidade e transparência sobre os dados e informações geradas pelo setor.
O caminho é reestruturar e modernizar a regulamentação do transporte público coletivo. Isso passa por oferecer a segurança jurídica indispensável aos contratos de concessão do setor e por definir padrões de qualidade para o serviço, com o poder público assumindo a parte que lhe cabe nesse processo.