“Quando alguém da periferia conquista este espaço, de ser dono de restaurante, é bem diferente. Você não é aceito, não é visto como um igual, na real, eles não querem você lá como eles.” A frase do chef Felipe Lemos, de 33 anos, do restaurante Planet Vegan (entrega e retirada), marca a avaliação que ele fez e o que sentiu durante os dois anos em que foi dono de um estabelecimento com salão em São Paulo, a cidade conhecida como capital gastronômica do Brasil.
Felipe lembra que o setor de restaurantes da cidade é majoritariamente controlado por empresários que fazem parte da porção mais rica da população, com origem nas classes A e B, mas que, com talento e força de vontade, diante de muitos desafios, quer virar esse jogo.
Vegano há cinco anos, o chef mudou toda a sua vida por causa da gastronomia e da conscientização em relação ao consumo de qualquer produto de origem animal. No extremo leste da capital paulista, Felipe e dois irmãos menores foram criados pela mãe, que era faxineira. Ele defende que o veganismo não é um movimento de “elite”, como às vezes parece.
“O veganismo precisa ser acessível a todos. É possível fazer comida gostosa, saudável e protéica para todos, muito popular”, afirma o chef. Para quem duvida, cita como exemplo que a ervilha, o feijão, o grão de bico e o tofu (um tipo de queijo, à base de soja e sem leite) podem substituir a proteína animal nas refeições e também são fonte de ferro. “O leite não é a única fonte de cálcio”, acrescenta. “Temos a couve e o brocólis.”
O QUE É VEGANISMO
De acordo com a organização Vegan Society, do Reino Unido, o veganismo é o modo de viver que exclui, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais — seja na alimentação, no vestuário ou em outras esferas do consumo. Por exemplo, produtos como lã, couro e seda não são usados.
A ideia da popularização do veganismo na periferia é, para o chef Felipe Lemos, parte de uma utopia maior de transformação da sociedade, uma mudança que já se iniciou e tem levado a muita reflexão
A ideia da popularização do veganismo na periferia é, para o chef Felipe Lemos, parte de uma utopia maior de transformação da sociedade, uma mudança que já se iniciou e tem levado a muita reflexão. Para Lemos, um ponto de virada na alimentação ocorreu quando assistiu os documentários A Carne é Fraca (2005); Terráqueos — Faça a Conexão (2005) e Paredes de Vidro (2007), que abordam diferentes aspectos dos problemas causados pelo consumo de carne, alimentos ultraprocessados e destruição do meio ambiente.
Um dos obstáculos apontados pelo chef à popularização da alimentação mais saudável e consciente é a falta de diálogo entre os veganos e a sociedade. De ambas as partes. “Algumas pessoas veganas precisam ter uma cabeça mais aberta, porque o veganismo é um movimento abrangente, que não se restringe apenas aos direitos dos animais. É necessário compreender a desigualdade social e entender que toda exploração está conectada de alguma forma. O veganismo é uma luta contra a exploração animal e a exploração humana”, explica Felipe.
Segundo ele, a relação entre as pessoas e a comida ficou muito distante e é importante resgatar o hábito de cozinhar, de preparar o próprio alimento com consciência. “Em nome da praticidade, a mídia vende uma ideia de economia de tempo, mas o certo seria a gente ter mais tempo na cozinha, mais tempo cuidando da gente e de quem a gente ama”, defende.
Origens — Felipe, na infância, não imaginava viver da gastronomia. Foi um garoto da periferia, como tantos outros do bairro de São Carlos, perto do terminal A.E. Carvalho. Morou num barraco de madeira em um terreno ocupado e depois em uma casinha pequena no CDHU, onde dividia o espaço com uma irmã e um irmão. A mãe, que trabalhava como faxineira, saía cedo e sempre chegava tarde. Ela passava longas horas no transporte público.
“Eu e meus irmãos crescemos juntos. Eu gostava de andar de skate. A minha mãe criava três filhos sozinha e com muita dificuldade tentava dar o melhor que podia. Me lembro dela fazendo pão e bolinho de chuva em casa”, conta.
O pai do Felipe saiu de casa quando ele tinha sete anos e não viu quando o garoto, aos 11, começou a competir em campeonatos de skate e conseguir patrocinadores para continuar no esporte. A experiência como atleta terminou aos 14 anos. Durante um período em que cumpria medida penal socioeducativa, Felipe fez um curso de confeitaria e cozinha.
É necessário compreender a desigualdade social e entender que toda exploração está conectada de alguma forma. O veganismo é uma luta contra a exploração animal e a exploração humana (Felipe Lemos, chef do Planet Vegan)
O primeiro contato com o trabalho em um restaurante foi lavando pratos. Aos poucos, Felipe aprendeu a cozinhar e descobriu o veganismo. Ascendeu na carreira e se dedicou ao estudo da gastronomia até que conseguiu montar o próprio restaurante, mas teve que encerrar as atividades presenciais da casa por causa do impacto da pandemia do covid-19.
A alternativa foi recriar o cardápio e começar a produzir comida para delivery e retirada, na cozinha que ele comanda no bairro da Mooca. O Planet Vegan, também na zona leste, tem opções de pizza, hambúrguer e doces, de segunda a sexta, das 18h às 23h e nos finais de semana até a meia-noite. “Quando a gente tem o próprio restaurante muda tudo. O seu esforço que antes ia para os outros, passa a ser para você mesmo.”