A grafiteira pernambucana Nathê sabe de onde veio e aonde quer chegar. Valoriza pessoas, movimentos e políticas que ajudaram a construir quem ela é hoje. Pensa coletivamente: quer ascender levando os seus consigo. É feliz por pagar as próprias contas, mas entende que ainda não é tão valorizada quanto artistas brancos. Mulheres negras são as personagens principais de seus grafites.
Aos 26 anos, Natália Carvalho Ferreira, a Nathê, é grafiteira, educadora social e ativista. Formada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco, entrou na arte urbana por influência de mulheres da área.
Na lata — Segurar a lata de spray pela primeira vez foi marcante para Nathê. Um amigo de sua comunidade emprestou a ela o objeto para que desenhasse uma sereia. “Eu fiquei doida, era uma arma muito potente que tinha na minha mão. Era muito poder uma lata de spray”, relembra. Desde então, esvaziou muitas outras latas e assina obras em muros e painéis no Estado de Pernambuco.
Nathê nasceu e cresceu na Vila Rica, conhecida como Cohab 1, em Jaboatão de Guararapes, região metropolitana de Recife. “Minha infância foi toda na subida dessa ladeira, que é muito grande.” Filha de dona Graciete, costureira formada em Letras, e de seu Sérgio, auxiliar de serviços gerais e motorista, Nathê sempre foi incentivada a estudar. Acompanhava a mãe no trabalho e passava o tempo desenhando e costurando roupas para suas bonecas. “Eu sempre tive o lado mais artístico aflorado, mas ligado ao artesanato.”
Na quinta série do ensino fundamental, Nathê começou a estudar em uma escola no centro de Recife, a Liceu Artes e Ofícios de Pernambuco. Para chegar até lá, pegava dois ônibus e um metrô. A experiência permitiu que tivesse contato com bairros e pessoas de diferentes classes sociais, o que abriu sua mente. Já no Ensino Médio, começou a participar do movimento feminista e decidiu parar de alisar o cabelo — junto à irmã, criou a página “Faça amor, não faça chapinha” no Facebook, que chegou a ter 150 mil seguidores.
Na organização não governamental Cores do Amanhã, Nathê fez as primeiras oficinas de grafite, estimulada por grafiteiras como Jouse Barata e Pri Witch, de Pernambuco e da Paraíba.
Tanto a cultura popular, no maracatu, quanto o movimento hip-hop foram importantes para a formação, afirma a artista. Outro ponto central em sua vida são as políticas públicas voltadas para população de baixa renda. Usou o máximo que pôde, tudo a que tinha direito. Entrou na universidade pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), por meio de cotas raciais, e viajou para vários estados usando o ID Jovem, um documento que garante vagas ou descontos em transportes interestaduais.
Arte baseada na escassez — “Já trabalhei por um lanche e cinco latas; já teve trabalho que pintei horrores e ganhei R$ 100”. Essa era a realidade de Nathê quando começou na profissão. Hoje, o reconhecimento é maior ela vive de sua arte. “Já consigo aumentar o meu valor, o que para mim é muito bom. Enquanto pessoa de periferia, vivo de arte hoje e pago minhas contas com ela”, afirma.
Dona do próprio CNPJ, Nathê faz projetos de pintura, cuida da produção e da pós produção e emite nota fiscal. Na elaboração dos trabalhos, um dos critérios é o baixo custo. “Todo meu trabalho foi baseado nessa questão da escassez. Você reconhece que é uma mulher preta por conta dos traços, mas ela não necessariamente tem pele negra, ela pode ter pele rosa, pele azul. Não foi só um conceito que eu quis colocar não, era porque eu só tinha essas cores.”
[No meu trabalho], você reconhece que é uma mulher preta nos traços, mas ela não necessariamente tem pele negra, pode ser rosa, azul. Não foi só um conceito, não, era porque eu só tinha essas cores
A grafiteira relata ainda uma desigualdade regional nos preços. “O spray, principalmente em Pernambuco, é muito caro, uma lata aqui custa R$ 28, enquanto em São Paulo, por exemplo, está por volta de R$ 16.”
Partindo da escassez, Nathê almeja chegar a espaços de destaque. Seu trabalho pode ser visto em muros, murais, túnel e tapume de museu. Está em Recife e outras cidades brasileiras. E ela já expôs no SP-Arte, o Festival Internacional de Arte de São Paulo, e na Christal Galeria, em Recife, além de marcar presença em vários festivais.
Minha mente em relação ao grafite é sempre tentar alcançar espaços que eu nunca nem os meus conseguiram
A artista também trabalha como educadora e ministra oficinas em presídios femininos, Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e casas de acolhimento. Seu gosto pela educação social e por ensinar pessoas em situação de vulnerabilidade vem do fato dela também ter vindo de um processo de invisibilização. “As pessoas se identificam comigo, e eu com elas.”
Mulheres negras na cena do graffiti — No dia desta entrevista, fazia menos de uma semana que Nathê havia voltado do Peru, onde participou do Nosotras Estamos en la Calle, festival feminino de arte urbana. Ao ser selecionada para o evento, a artista teria garantidas a alimentação e estadia, mais o material para a pintura. O dinheiro da passagem seria por sua conta. Para conseguir viajar, fez campanha nas redes sociais, com rifas e pedidos de doação.
A nordestina se emociona ao falar da primeira viagem internacional. Diz que é grata pelos que a ajudaram e entende que depositaram nela a vontade de vê-la no festival.
Quando questionada sobre o espaço ocupado pelas mulheres negras no grafite, Nathê critica o apagamento do grupo na história do movimento. “O hip-hop é machista [movimento ao qual o grafite está diretamente relacionado], não tem o que dizer, ele pode ser revolucionário, fortalecedor da periferia, mas ele é machista. Além disso, há um fator de segurança para as minas que grafitam, já que a rua é perigosa para as mulheres”, pontua.
Apesar dos obstáculos, Nathê reconhece que atualmente há uma gama de mulheres em grandes eventos e ganhando dinheiro através dessa arte. Ressalta que as negras trazem suas referências para as obras, apresentando as próprias vivências, empoderamento e ancestralidade. “É muito importante para mim pintar com outras mulheres negras, porque a gente sabe que, profissionalmente, quem tem acesso é a branquitude. Mas se você entrar na rua só tem grafiteiro preto”, emenda.
Enquanto mulheres de periferia temos que trabalhar em dobro, trabalhar o triplo. É cansativo, um peso gigante que a gente tem que carregar, mas é compensador, porque nunca subimos só. Quando a gente sobe, traz outras conosco