‘Entrar na faculdade não basta, é preciso permanecer nela’; veja balanço dos 10 anos da Lei de Cotas

A norma federal de 2012 impulsionou o movimento, mas ações afirmativas já eram adotadas pelo ensino superior público: a Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, foi a primeira universidade federal a usar o sistema de cotas raciais, em 2004. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

30/08/2022 - Tempo de leitura: 6 minutos, 40 segundos

Sistema de reserva de vagas em instituições federais de ensino completa dez anos e insere 20% mais pretos, pardos e indígenas na universidade

Com reportagem de Ítalo Lo Re e Renata Cafardo, O Estado de S. Paulo

O retrato nas carteirinhas de estudante ficou, aos poucos, mais diverso nos últimos dez anos, quando passou a vigorar a Lei de Cotas para pobres, negros e indígenas nas universidades federais. Ações afirmativas já eram adotadas no ensino superior público, mas a norma federal de 2012 impulsionou o movimento.
A trajetória de alunos que entraram por esse modelo expõe os resultados e desafios das cotas, como a demanda por políticas de apoio pedagógico e financeiro aos alunos, os primeiros passos no mercado de trabalho e a adoção de estratégias para inclusão além da reserva de vagas.

Levantamento do Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas formado por pesquisadores de diferentes universidades, indica que em 2012 estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI) correspondiam a 43,7% dos universitários de 18 a 24 anos. Em 2021, essa fatia saltou 20%, para 52,4% — a proporção de PPI no Brasil é de cerca de 57%, segundo dados do IBGE. A Lei de Cotas prevê que o modelo deve passar por revisão após dez anos em vigor. Já existem propostas no Congresso para rediscutir o modelo, mas não há previsão para esse debate.

Levantamento do Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas indica que estudantes pretos, pardos e indígenas saltaram de 43,7% dos universitários de 18 a 24 anos, em 2012, para 52,4% em 2021

Criado em Cachoeira do Roberto (PE), povoado com cerca de 300 habitantes, Caio Silva, de 25 anos, tinha pouca perspectiva quando concluiu o ensino fundamental. Lá, morava com os pais e os irmãos em uma casa de um quarto, onde não há nem rede de esgoto. Foi morar com um tio em Petrolina para fazer o ensino médio e, mais tarde, passou por meio de cotas na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) – ele se autodeclara pardo. “Antes de ir para Petrolina, eu nem pensava em fazer ensino superior, mas os professores me incentivaram”, conta o jovem, que primeiro optou por Engenharia Elétrica, mas depois conseguiu ingressar em Medicina.

Virou inspiração para os irmãos e os vizinhos de Cachoeira do Roberto. Ao voltar na “roça”, relata, escuta casos de adolescentes que vão para Petrolina estudar – e não apenas trabalhar -, porque os pais viram uma chance na educação. “Isso me deixa feliz. Principalmente quando ouço que sou um exemplo.” Após se formar como médico neste ano, Caio começou a trabalhar em uma cidade no interior da Bahia pelo programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, para levar profissionais da saúde para lugares remotos.

Impacto — “Quando surge a Lei de Cotas, se percebe nitidamente que o impacto maior é nos cursos de mais alta demanda e procura (como Medicina, engenharias etc)”, explica Thiago Thobias, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

SOBRE A LEI DE COTAS Sancionada em 29 de agosto de 2012, a Lei de Cotas prevê que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) reservem, para cada graduação, no mínimo metade das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio na rede pública. Metade delas (25% do total) deve ser para alunos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo por pessoa. Ao mesmo tempo, as instituições devem destinar vagas específicas, dentro dessa metade reservada, a vestibulandos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas e, desde 2016, para pessoas com deficiência. A proporção varia conforme o perfil demográfico do Estado.

Primeira da família a ingressar na faculdade, Fernanda Nogueira, de 27 anos, entrou na Federal Fluminense (UFF) em 2014 pela política de cotas raciais na última lista de aprovados. Conta que já se sentiu excluída por ingressar duas semanas depois de as aulas terem começado e ainda por ser a única negra da turma de Direito. “Descobri que eu era negra na faculdade”, afirma ela que nasceu em São Gonçalo, no Rio, e é filha de um motorista de ônibus. Fernanda só se integrou depois de dois anos, quando conheceu colegas negros de outros cursos, e começou a discutir racismo na universidade. Acabou se tornando a primeira presidente negra e mulher do centro acadêmico e hoje trabalha em uma consultoria de diversidade e inclusão para empresas. “Saí satisfeita da universidade, mas não vitoriosa, porque há muito o que construir ainda”, acrescenta.

Professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), Luiz Augusto Campos, que integra o Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas, avalia que a lei trouxe uma “diversificação rápida e intensa do ensino superior” do País. Mas reconhece a necessidade de ajustes. “Não há uma política unificada, moderna e adequada de permanência estudantil”, afirma. Entre as possíveis medidas de assistência a cotistas estão a oferta de bolsas, restaurantes e moradias universitárias, ajuda com equipamentos e acesso à internet, entre outros. “Isso é um grande gargalo.” Parte dos especialistas também defende ações para reforço pedagógico, como aulas de reforço ou de idiomas aos alunos.

Jornada dupla — De Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Loíse Lorena Santos, de 27 anos, sempre foi incentivada pelos pais a fazer faculdade. Mirou Psicologia na Uerj, uma das pioneiras na adoção de cotas no Brasil, mas não conseguiu passar direto do ensino médio. A jovem, então, fez cursinho particular e trabalhou (de jovem aprendiz a garçonete) para pagar os estudos. Filha de um operador de empilhadeira e uma dona de casa, os pais não tinham condições de arcar com os custos na época, o que naturalmente a colocou em uma jornada dupla.

Após focar nos estudos como dava, Loíse, que se autodeclara negra, ingressou em Psicologia na Uerj pelas cotas em 2014. A graduação, explica, foi toda feita à noite, o que a permitiu trabalhar em uma escola até a conclusão do curso. “Minha trajetória conciliando a graduação com o trabalho era bem difícil. Tinha de fazer trabalhos de madrugada, no fim de semana”, lembra. Na Uerj, os alunos que ingressam por reserva de vagas também recebem bolsa, mas esse não é um padrão nas universidades públicas. Combater a evasão, diante disso, se mostra um desafio. “Só ingressar na faculdade não é suficiente, é preciso permanecer nela”, diz Loíse, que hoje faz doutorado na mesma instituição.

Já o indígena do povo de Sateré-Mawé, Erimar Miquiles, de 35 anos, não conseguiu o mesmo que Loíse. Ele ingressou em 2014 em Direito pelas cotas, mas acabou trancando o curso. “Minha maior dificuldade foi estudar e ter de trabalhar ao mesmo tempo”, lembra ele, do Amazonas. A dificuldade com o conteúdo era outro desafio. “Quando a gente entra em uma universidade pública por cotas, começa a corrida bem atrás. Lembro que, no 1.º ano, as questões eram mais introdutórias. Os colegas que vieram de escola particular já tinham preparação para aquilo. Eu tinha de estudar em dobro para acompanhar.”

Pesquisas reunidas pelo Consórcio de Acompanhamento de Ações Afirmativas mostram que o desempenho de cotistas ao longo da faculdade não é muito diferente dos universitários que entraram pela via convencional. Estudo recente indica que as notas de cotistas e não cotistas matriculados entre 2016 e 2020 na Universidade Federal de Minas (UFMG) diferem pouco e são menos desiguais, por exemplo, que a pontuação obtida por esses dois grupos no Enem.