Termina mais um ano de crise sanitária e avaliar os pontos de atenção da saúde pública no Brasil é fundamental, sobretudo nas periferias e favelas, onde vivem as pessoas mais vulneráveis socialmente.
O racismo tem efeitos evidentes na saúde da população negra. Quem faz essa afirmação é a assistente social e doutora em Saúde Pública Maria Inês Barbosa. Diante de fatores históricos e da atual condição do País, a pesquisadora reforça que é preciso considerar esse fator na formulação de políticas públicas. “Ser mulher, negro, indígena e pobre impacta nas condições de nascer, viver, adoecer e morrer”, diz a assistente social.
Até agora, avalia Maria Inês, os movimentos de mulheres negras — e o movimento negro em geral — foram os que mais desenvolveram estudos e estratégicas para a saúde dessas populações no Brasil.
Um dos frutos dessa articulação é a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009. Trata-se de um compromisso firmado pelo Ministério da Saúde no combate às desigualdades no Sistema Único de Saúde, o SUS. A política faz parte do Estatuto Estadual da Igualdade Racial e, mesmo com amparo legal, ainda não é cumprida como deveria.
Só 28% dos municípios brasileiros implementaram as medidas da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 2009 (IBGE)
Fabiana Pinto, sanitarista, pesquisadora e integrante do projeto Mulheres Negras Decidem, concorda que o aumento da participação de mulheres negras na política tem sido fundamental para o aprimoramento de políticas públicas de saúde. Mas a presença de mulheres no ambiente político, ainda é pequena. “Os primeiros projetos de lei para criar uma fila única para os leitos de UTI no início da pandemia são de mulheres negras”, conta Fabiana.
Há apenas 2% de mulheres negras no Congresso Nacional. Ainda assim, a presença desse grupo tem resultado em uma influência e ações importantes (IBGE)
Na entrevista a seguir, Maria Inês e Fabiana conversam com as jornalistas Beatriz de Oliveira e Semayat Oliveira, do coletivo de comunicação Nós, Mulheres da Periferia.
Nós, Mulheres da Periferia — Maria Inês, como você define saúde? O que significa ser um ser com saúde?
Maria Inês Barbosa — Temos que pensar a saúde para além do biológico e também inserir esse pensar num contexto histórico, econômico e social. Na ciência, temos grandes avanços. Toda a compreensão do campo da saúde coletiva e dos determinantes socioculturais do processo saúde e doença é histórico.
Falando do movimento de homens e mulheres negras, foi necessário considerar a existência de determinantes a partir de uma leitura que compreenda o patriarcado, a dominação econômica por classes e o racismo. A grande contribuição que trouxemos para esse campo de discussão foi chamar a atenção de que o racismo é um dos determinantes da saúde. Porque embora o campo da saúde coletiva seja bastante avançado, em especial na América Latina, o racismo não era considerado.
O que significa ser um ser com saúde?
Maria Inês — A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como o mais completo bem estar físico, mental e social e não a ausência de doença. Mas isso tem uma história, com outras contextualizações e implicações na saúde. O conceito de saúde da 8ª Conferência Nacional de Saúde, tem o seu tempo e historicidade, afirmando que saúde é ter casa, educação, trabalho, transporte. É um grande avanço, que mais tarde será discutido no âmbito das Nações Unidas, quando se cria o conselho de determinantes sociais em saúde, mas o racismo não foi considerado.
O campo da saúde da população negra fomos nós que criamos [militância], nos voltando para a universidade, trazendo esse olhar
Pensando na nossa atual condição, qual é a nossa dificuldade em compreender a saúde como um direito?
Maria Inês — Primeiro, vou falar sobre a importância da saúde pública. A saúde é um direito universal, que não pode ser mercantilizado. É longa a trajetória da humanidade para considerar isso. Vai além da biologia pensar na saúde, no coletivo, em como o indivíduo adoece. Depende do corpo atingido e como esse sujeito é inserido na sociedade.
A saúde tem que ser efetivamente um direito das pessoas e um dever do Estado. Foi o que conquistamos na Constituição em um longo processo de luta e resistência. Nós somos um dos poucos países do mundo que logrou este feito.
Sabemos que [essa conquista] fez parte de uma reforma que não revolucionou a sociedade em si, mas trouxe uma contribuição que vai de encontro à lógica capitalista. Ao estabelecer a saúde como direito de todos e dever do Estado, a lógica deveria ser outra, e daí a luta constante que nós temos com essa contradição.
Costumo dizer que ‘o outro lado não dorme’. Temos uma série de medidas que foram tomadas para solapar isso, para que não percebamos [a saúde] enquanto direito. Avançamos enquanto sistema único, mas preservamos a lógica anterior da saúde pública, que funciona por caixinhas e por programas. Mas é preciso desmontar essa forma de pensar para que as pessoas considerem que se trata de um direito e não um favor.
Ainda temos a perspectiva de uma política meritocrática. ‘Eu tenho porque trabalho registrado’, ‘tenho determinada função ou determinado padrão de assistência e serviços’. E os demais são alvo da caridade, da assistência. Uma das leituras que a gente faz é que são políticas residuais. Entenda-se residuais como resíduos mesmo. É um ‘favor’ que o Estado presta.
Se não avançarmos em direitos de cidadania por parte da população e pelos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, eles também farão uma leitura de que estão te fazendo um favor.
Nesse sentido, a pandemia traz para as pessoas, de forma mais ampla, qual é o papel de um sistema de saúde, que vai além da assistência. É perceber que o alimento que você come, por exemplo, também depende do SUS. É esse sistema que garante que este será um alimento saudável
Como o movimento de mulheres negras e o movimento negro atuam no direito à saúde?
Maria Inês — Acho importante chamar atenção para todo o nosso processo de conhecimento em termos de saúde que preservaram e cuidaram da vida. Um saber diferente da formulação de matriz europeia, judaica, cristã. É preciso romper com sexismo, racismo e dominação de classes.
Nós sempre fizemos parte desses agentes de transformação. A própria história de construção do SUS começa nas comunidades. Essa concepção de saúde ampliada está presente nos movimentos. Você tem que ter conhecimento desse processo histórico, conhecimento é poder. Se não conheço minha história, não sou sujeito dessa história. Como diz um provérbio de origem africana: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador”. Uma das nossas conquistas é a questão da identidade, do reconhecimento, da autoafirmação.
Se hoje, estatisticamente, a população negra é a maioria da população brasileira, há quarenta anos não éramos. Quando o movimento negro lutou para ter dados desagregados no campo da saúde, é porque ser mulher, negro, indígena, pobre impacta nas condições de nascer, viver, adoecer e morrer.
Como esse novo cenário de maior presença de mulheres negras na política contribui para a fiscalização das políticas públicas e até mesmo fazer com que isso avance mais?
Fabiana Pinto — Num contexto mais recente, temos alguns exemplos do impacto do avanço de mulheres negras comprometidas com políticas públicas universais, com uma visão de saúde ampliada. Os primeiros projetos de lei para criar uma fila única para os leitos de UTI no início da pandemia são de mulheres negras.
O avanço dessas mulheres negras do campo progressista, que tem um compromisso com a vida, foi muito importante para a garantia de direitos. Hoje, nesse debate sobre a vacinação, sobre quem deveria ser um grupo prioritário, também. Por que hoje, novembro de 2021, a população negra ainda é a menor parcela vacinada?
Eu enxergo que as mulheres tiveram um papel fundamental nesse aprimoramento de políticas públicas de saúde. Garantir que tenham pessoas eleitas nesses cargos, nesses espaços de tomada de decisão para lutar pelos nossos direitos e garantir a manutenção também é algo fundamental.
Fabiana, quando a gente fala na consolidação do SUS fala-se muito do movimento de sanitaristas, mas as mulheres negras foram fundamentais. Então, que história é essa que a gente ainda precisa acessar, de como mulheres periféricas e negras contribuíram para criação dessa política?
Fabiana Pinto — A história tradicional sobre a saúde pública no Brasil e a história da construção do SUS costuma privilegiar determinados atores. Entretanto, outros grupos também foram grandes responsáveis por avanços na década de 70, 80 e na consolidação da Constituição,mas são esquecidos como agentes políticos. O próprio Movimento Mulheres Negras Decidem retoma como as mulheres negras foram agentes políticos na construção das principais políticas públicas estruturantes do nosso país.
Então, pode ser comum associar o movimento da reforma sanitária, um movimento que não passa por comunidades tradicionais, por movimentos sociais, por movimentos de base. Isso é ignorado propositalmente. No entanto, pensando nessa construção de orientação de políticas públicas nesse período, os acordos dos movimentos de profissionais que contribuíram para a criação de programas que, depois, se configuraram como políticas no nosso sistema, a cor dessas pessoas é a cor negra.
Hoje, a Política Nacional de Atenção Básica, que teoricamente é a política estruturante, tem seus primórdios no programa de Saúde da Família. Se a gente for olhar para uma perspectiva mais longa, chegamos no programa de Agente Comunitário de Saúde. E quem eram as pessoas que pensaram essas políticas e aprimorando ao longo da história? Essas pessoas éramos nós, eram os movimentos sociais, movimento de trabalhadores. A história exclui movimentos comunitários. Essas grandes lideranças não são vistas como figuras pensantes e pessoas que formularam também essas políticas.
O movimento de mulheres negras atual têm um papel fundamental, que é trazer de volta esse lugar, que é negado quando analisamos esse processo de construção histórica, de quem conta a história da reforma sanitária, da consolidação do SUS, da constituição do SUS .
Maria Inês, você colocou que, com a pandemia, a importância do SUS ficou mais evidente. E a gente viu nas redes sociais as pessoas defendendo o SUS. O que precisamos estabelecer daqui em diante como um manifesto de defesa a esse sistema?
Maria Inês — Primeiro, entendendo que estamos em uma disputa pelo poder. Cabe a nós estar à frente desses processos. Temos muitas lições a aprender e muitos desafios têm surgido. Avançamos no sentido de que o racismo está presente no discurso [atual], mas ele não tem sido desconstruído na sua forma de reprodução. Trata-se de uma luta política pelo poder por um outro projeto.
Somos a maioria da população. E a partir do momento que tivemos dados desagregados [por cor, na maioria das pesquisas], verificamos que a população negra vota do centro para a esquerda. Só que não temos isso como uma força política. Se você vai para dentro dos partidos, ainda não disputamos espaços de poder. Quando se constitui um governo, precisamos ter papéis correspondentes à nossa força política.
Isso é um dos desafios para a implementação da saúde da população negra enquanto uma política que aprofunda o que é o Sistema Único de Saúde. Mas ressalto que, quando falamos em saúde da população negra, falamos do racismo como determinante em saúde e não que nós vamos ter um SUS [apenas] para pessoas pretas.
O resumo é: temos que estar nesses espaços. E não é estar por estar. É um compromisso, uma responsabilidade de transformar. A representação é importante, mas muito maior é o compromisso com o nosso povo.
Esta entrevista foi feita pelo Nós, Mulheres da Periferia em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, que recentemente publicou o livro ‘A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras', organizado pelo grupo Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco. A publicação é da editora Oralituras