Estilista de Goiânia usa a moda para contar a história negra do Brasil

Ensaio fotográfico da coleção Foguete, a estreia de Naya Violeta na São Paulo Fashion Week (junho de 2021). Foto: Takeuchiss/Divulgação
Luiz Carvalho
15/03/2022 - Tempo de leitura: 4 minutos, 54 segundos

Era 24 de junho de 2020, festa de Xangô, e a pandemia de covid-19 estava em um dos piores momentos. No terreiro de Candomblé, a estilista goianiense Naya Violeta bateu cabeça diante da fogueira dedicada ao orixá da justiça e do fogo. Ela pedia para participar da Casa dos Criadores, uma espécie de antessala da São Paulo Fashion Week. Naya sabia que a grife que leva seu nome precisava de um alcance maior, para sobreviver e ser notada. Um ano depois, em junho de 2021, foi pelo salão principal da SPFW que a designer entrou no maior evento de moda do País e apresentou a coleção Foguete, dedicada ao poder das chamas que aquecem e mudam formas. Repetiria a dose em novembro do mesmo ano, desfilando a Encante.

“Tínhamos muita desesperança e só Xangô mesmo para aquecer nossa vontade de viver e permitir que a gente permanecesse neste presente, afastando-se dessa doença”, explica.




Formada entre terreiros, orixás, quintais com máquinas de costura e manifestações afro-brasileiras, como o jongo, a congada e a folia de reis, Naya foi a primeira representante do centro-oeste a participar da São Paulo Fashion Week. Um espaço conquistado sob a orientação de nomes como o de Luiz Claudio Silva, fundador da Apartamento 03 e primeiro estilista negro a se apresentar no evento. Quando a grife de Naya deu as caras na passarela paulistana, ele vibrava na primeira fila.

Quintais e terreiros — O talento para criações — e o que chama de autonomia do vestir —  Naya diz que herdou da família essencialmente matriarcal. São oito tias, muitas delas costureiras que produziam nos quintais. Puxou dali também o garimpar das peças em lojas e brechós, para transformá-las em modelos únicos, gastando pouco. Dos pais, veio o jeito para o comércio lapidado num mercadinho de secos e molhados, em Goiânia.

Quando ingressou na segunda turma de moda da Universidade de Goiás, a estilista levou a experiência de negociação que ajudou a costurar o caminho da grife nascida em 2007. “Na faculdade, fazia roupas e bolsas de vinil e vendia para amigas. Com isso encontrei representatividade e passei a produzir peças que eu não encontrava no mercado.”

A dificuldade para obter modelos com estampas e cores, descobriu, não era mero acaso. Havia uma relação entre a invisibilidade e a referência ao que chama de símbolo da felicidade afetiva da população negra e das festas populares.

Dessa ausência surgiu o desejo de fazer com que a moda pudesse trazer um “vestir político”, com o olhar voltado ao axé dos ancestrais e uma maneira diferente de produzir, em escala menor e com respeito a toda a cadeia produtiva. “Quando marcas menores como a minha se propõem a dialogar com as pessoas, temos a oportunidade de explicar o custo que envolve a produção, o valor do tecido, que é preciso pagar um salário digno à costureira, a quem prega o botão, ao modelo. Estamos vindo num processo didático e vemos as pessoas entenderem porque a roupa é mais cara do que a da Renner, por exemplo.”

Naya sabe que a busca por representatividade de uma mulher negra de axé não é simples. Por isso — e não só —, a valorização de quem ajudou a construir a grife é parte fundamental do processo, explica. “Quando entrei na Fashion Week e minutos depois tinha um texto da Vogue falando da minha costureira, Valdirene, que está há dez anos com a gente, e do Washington, que é nosso modelista, isso me deixou muito feliz, porque é dividir reconhecimento. Não me deram espaço, foi conquistado. E eu só consigo transitar por ele quando há pertencimento.”

EM GOIÁS
Entre 2018 e 2019, Goiás foi o primeiro estado em crescimento de casos de injúria racial e racismo no país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostrou aumento de 104% nas injúrias e de 146% nas denúncias de racismo 146%. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas de agosto de 2021 diz que o Estado está em quinto lugar em aumento da pobreza, com 24 pessoas a cada 100 sobrevivendo com uma renda de até R$ 450 mensais.

Para muitos corpos — Junto a cores e simbologias dos terreiros de Candomblé, Naya leva em seu trabalho a ideia de pluralidade e inclusão, fugindo dos padrões corporais que predominam nas passarelas. A roupa tem de funcionar para quem tem peito e barriga, porque são os corpos curvilíneos que estão nas ruas.





Outra preocupação é fazer e vender peças que cheguem a diversos bolsos sem que, com isso, deixe de valorizar quem produz. No catálogo da marca, modelos apresentados na São Paulo Fashion Week podem atingir até R$ 500, mas também há peças comercializadas por R$ 40.

Para Naya, porém, a expansão dos pontos de venda da grife — que já vestiu artistas com Liniker e Xênia França — corre em paralelo com o desafio de compartilhar os saberes das ancestrais “e servir de espelho a outras manas”.

“Quero que as meninas pretas vejam minhas roupas e digam que há desenhos que parecem com elas; que possam perceber que a matriarca da congada, na estampa, parece a avó, tem um nariz igual ao dela. E quero poder devolver o conhecimento que obtive com minhas tias, talvez promovendo treinamento em forma de rodas de conversa para que elas mesmas possam contar o que sabem”, idealiza.


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