Estudiosas da religião afirmam que Bolsonaro não reflete valores cristãos

Jair Bolsonaro participa de missa na Basílica de Aparecida do Norte em Aparecida (SP), em 12 de outubro de 2022. Foto: BRUNO CASTILHO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

24/10/2022 - Tempo de leitura: 3 minutos, 44 segundos

O atual presidente da República Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, adota politicamente discursos firmados em pautas conservadoras alinhadas ao que ele e seus apoiadores chamam de “família tradicional brasileira” e “valores cristãos”. Por outro lado, Bolsonaro age, fala e se comporta publicamente de um jeito que se choca violentamente com os princípios de amor ao próximo.

Bolsonaro se autodeclara católico e, ao mesmo tempo, apoia-se no cristianismo protestante. Em 2016, ele até foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel (mesmo local em que a Bíblia diz que Jesus foi batizado), pelo Pastor Everaldo Pereira. Pereira é membro da Assembleia de Deus Ministério Madureira e presidente do Partido Social Cristão (PSC). O casamento com Michelle Bolsonaro (evangélica), em 2013, foi celebrado pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.

Para ficar só no caso do presidente, e das eleições deste ano, o cenário ganha complexidade quando se desfazem totalmente as margens que separam política e religião — em cultos evangélicos transformados em palanque e na tentativa de se apropriar de celebrações católicas, como Cirio de Nazaré e a festa de Nossa Senhora de Aparecida — e quando valores são distorcidos.

Teoricamente, no Brasil, vivemos em um Estado laico (“em que todas as religiões contam com a proteção estatal. Consagra-se a liberdade de crença e de culto”). Mas quem acompanha o noticiário profissional sabe que a religião tem pautado o debate público e feito muita gente de fé se perguntar: afinal, que valores cristãos guiam as ações do candidato à reeleição? Isso deve ou não influenciar o voto?

A historiadora Gisele Cristina Pereira, liderança do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e especialista e mestre em Ciência da Religião, explica que os evangelhos alertam sobre o exercício de uma fé vazia. “Não adianta invocar ‘Deus acima de tudo’, se o que se pratica é o ódio, a violência, a exclusão e a opressão. Não é Deus que está acima de tudo, mas um projeto autoritário que se utiliza da crença para se legitimar e fazer submeter”, afirma Gisele.

Para Magali Cunha, cristã, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), fica evidente o perigo de um discurso religioso instrumentalizado para a defesa de uma ideologia de extrema direita, que retira direitos e privilegia só algumas parcelas (já privilegiadas) da população. “[Isso] Diminui o acesso social à justiça, nega a pluralidade e a oposição. Então o discurso cristão está sendo utilizado particularmente para referendar e angariar adeptos a este princípio ideológico”, afirma Magali.

Um aspecto destacado pela pesquisadora é o fato de a ideologia do bolsonarismo ter alcançado com força igrejas evangélicas e católicas ao estimular uma imposição “daquilo que deve ser realizado e defendido”. Também alcançou, acrescenta Magali, um imaginário de que é preciso combater os inimigos da fé que estavam fora das igrejas. “Durante muito tempo eram [nesse campo] identificadas religiões de matriz afro, mas recentemente são as feministas, os ativistas LGBT e cada vez mais inimigos foram trazidos para o campo da política para serem combatidos. Além disso, agora mais recentemente se coloca os inimigos dentro da própria igreja, ou seja, quem defende a pauta de direitos consistentes na esquerda. Os mais progressistas são identificados como o inimigo dentro das próprias igrejas.”

Magali entende, assim como Gisele, que o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, assumido pelo governo Bolsonaro, não corresponde ao que o presidente em sua função realiza. “Notamos isso nas mais de 687 mil mortes por covid-19 no Brasil. Atitudes negacionistas e de não prevenção para salvar vidas. Foi o maior exemplo de que não é ‘Brasil acima de tudo’ e nem ‘Deus acima de todos’, porque Deus é misericórdia, cuidado, pastoreio que, se realmente fosse assumido, o governo teria um outro tipo de atitude.”

Outro exemplo citado por Magali é a política de armar a população. “Deus não é belicoso nem violento, o que rege o cristianismo são os evangelhos e neles a figura de Jesus é uma figura da pacificação, da mansidão, do respeito o que não corresponde ao que vem sendo aplicado por este governo.”