Gastronomia periférica recebe prêmios internacionais


19/08/2022 - Tempo de leitura: 6 minutos, 31 segundos

A desigualdade social coloca a fome na periferia, mas a periferia não tem de ser sinônimo de fome — principalmente no vocabulário de organizações e negócios sociais que desenvolvem métodos próprios de pensar e fazer gastronomia, desafiando a escassez. Essas iniciativas, criadas por moradores, buscam e encontram soluções coladas na alimentação saudável e na qualidade de vida. E têm sido reconhecidas por sua atividade.

FOME E INSEGURANÇA ALIMENTAR

Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, mas começou a voltar em 2018. A situação piorou com a pandemia e, atualmente, o País tem mais de 33 milhões de pessoas com fome, sendo que 58% da população se encontra em algum grau de insegurança alimentar — ou seja, não tem acesso regular a refeições de qualidade e em quantidade suficiente para sobreviver.

“A alimentação é um direito constitucional, nós trabalhamos a partir desse lugar” explica Edson Leite, morador de Osasco, cozinheiro e responsável pelo Gastronomia Periférica — um curso completo (e gratuito) que forma cozinheiras e cozinheiros para trabalhar na área. Edson recebeu menção honrosa no prêmio Basque Culinary World Prize, um dos títulos de maior impacto social na gastronomia. O anúncio foi feito no dia 21 de junho de 2022.

Criado pelo respeitado Centro Culinário Basco, no País Basco, o Basque Culinary Word Prize é um reconhecimento ao profissional pela atuação na alimentação para a sociedade, sobretudo os mais pobres.

No Gastronomia Periférica, Edson tem a parceria da co-fundadora Adélia Rodrigues, que é formada em psicologia e educação ambiental. O objetivo do negócio — sediado em Osasco, mas que atende em todo o Brasil — é ensinar culinária com o aproveitamento total dos alimentos, associando aos conhecimentos técnicos o desenvolvimento humano. “A gente quer muito que a gente não seja só mão, mas seja corpo inteiro, não só mão de obra barata”, explica Adélia. Além da formação, os alunos são indicados para estágios em restaurantes parceiros.

A escola, que já formou 668 pessoas, tem uma plataforma online de 330 horas de aulas gravadas que, somadas aos 30% ao vivo e ao plantão de dúvidas, compõem o curso gratuito oferecido pela organização. Mais de 40 profissionais são responsáveis pelos conteúdos para alunos de todo o Brasil. Para os estudantes, a formação é uma possibilidade de transformar a vida por meio de uma nova profissão.

Sabores da Maré — Outro prêmio que reconheceu uma iniciativa de impacto social do Brasil foi o 50 Next. Ele destaca 50 nomes de 35 países que fazem a diferença no mundo da gastronomia. No ano passado, duas personalidades brasileiras foram homenageadas. Uma delas é Mariana Aleixo, moradora do Complexo da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro, com 140 mil habitantes. Mariana é uma das coordenadoras do projeto Maré de Sabores, que oferece oficinas de formação em gastronomia para moradoras da Maré desde 2010. Trata-se de um dos braços da Redes da Maré, organização da sociedade civil que atua há quase 30 anos no território e promove 64 cursos profissionalizantes.

A gastronomia vai precisar investir em pessoas de territórios populares que, além de produzir negócios de gastronomia, cultura e arte a partir da alimentação, também produzem impacto para além do restaurante e do sentido financeiro (Mariana Aleixo, coordenadora da Maré de Sabores)

O Maré de Sabores ganhou tamanho e autonomia na demanda das mães dos alunos das escolas públicas em que acontecia. As mulheres também queriam se capacitar. Esse movimento atribuiu ao projeto um recorte de gênero importante na sociedade e deu origem ao Buffet Maré de Sabores, que gera trabalho e renda. São as mulheres que comandam todas as etapas do negócio. Hoje, o Maré de Sabores funciona dentro da Casa de Mulheres da Maré, um espaço que contribui para melhorar as condições de vida da população feminina da região (e consequentemente das comunidades). O projeto oferece formação profissional e política com o intuito de dar continuidade à luta das mulheres desde a década de 1980.

O 50 Next reconhece 50 jovens que estão moldando o futuro da alimentação no planeta e faz parte da organização 50 Best, reconhecida por outras listas globais de gastronomia.

 

Equipe do projeto de formação e geração de emprego e renda Maré de Sabores, na Favela da Maré. Foto: divulgação

Campo Limpo — Junto com a Mariana, outro brasileiro premiado no 50 Next de 2021 foi o empreendedor sociocultural Thiago Vinicius, gestor da Agência Solano Trindade, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo. O objetivo da Solano Trindade é intensificar ações empreendedoras dos moradores das periferias da região.

No combate à fome e na militância pelo desenvolvimento do território e da alimentação saudável, duas iniciativas da organização sobressaem: uma é o Armazém Organicamente, um sacolão que só vende frutas, verduras e legumes orgânicos da própria horta (no município de Juquitiba) e de agricultores familiares da região de Parelheiros. A outra é o restaurante Organicamente Rango, que trabalha o resgate e a riqueza do aproveitamento dos alimentos. Brilham e perfumam a agência as receitas da mãe do Thiago, a Tia Nice. Thiago montou o restaurante só com doações e depois de quatro anos de muito trabalho conseguiu comprar um forno. Ele se orgulha da trajetória, da contribuição social e do repertório que pode compartilhar no debate sobre alimentação saudável e qualidade de vida.

Fundada em 2009 por um grupo de amigos que atuavam no movimento cultural da zona sul, a Agência Solano Trindade surgiu para suprir necessidade e vontade de ter, na favela, um lugar para trabalhar, realizar e conectar saberes.

Quando perguntado sobre como foi receber o prêmio, Thiago diz que “a gente não faz as coisas para ganhar prêmio, mas quando ele vem ajuda a quebrar a bolha e ir além; todo mundo sabe que a gente existe agora, saímos em vários jornais. Hoje, através do restaurante, estamos tirando a periferia das páginas policiais e entrando nas páginas da gastronomia. É bom demais ver o sorriso das pessoas da minha família e das quem vêm comer aqui. Ver elas saindo restauradas”, completa Thiago.

 

Tia Nice e Thiago Vinícius, à frente dos projetos gastronômicos da Agência Solando Trindade: exemplos de transformação social. Foto: divulgação

Estamos tirando a periferia das páginas policiais e entrando nas páginas da gastronomia. É bom demais ver o sorriso das pessoas da minha família e as quem vêm comer aqui. Ver elas saindo restauradas (Thiago Vinicius, gestor da Agência Solano Trindade)

Todos esses empreendimentos fizeram doação de comida para as pessoas mais vulneráveis durante a pandemia. “Não foi a alta gastronomia que se organizou para pensar na fome, mas sim esses espaços de produção de comida de favela que conseguiram se organizar para pensar na população, que é muito próxima a gente, está no nosso território, é nosso vizinho, é alguém que você reconhece todos os dias quando tá no caminho de casa, para pegar o ônibus”, afirma Mariana Aleixo. “A gastronomia vai precisar investir em pessoas de territórios populares que, além de produzir negócios de gastronomia, cultura e arte a partir da alimentação, também produzem impacto para além do restaurante e do sentido financeiro.”

Adélia Rodrigues e Edson Leite são fundadores da escola Gastronomia Periférica em Osasco. A iniciativa recebeu menção honrosa no Basque Culinary World Prize. Foto: divulgação