A relação de dois personagens importantes, Estado e Favela, pode ser resumida numa analogia ficcional (ou não): o Estado é o pai biológico que assumiu e sumiu (figurinha familiar na sociedade brasileira, onde a paternidade é opcional). Favela é o filho que se criou sozinho e aprendeu, nas ruas, a performar sua juventude e as responsabilidades da vida adulta. A mãe está ausente, mas não é não por querer: alguém precisa trabalhar para dar casa, comida e roupa lavada para sua cria.
Anos depois, o filho já adulto e tendo as próprias crianças para criar, o pai Estado volta. Agora ele quer impor a força bruta para que tudo seja do seu jeito. Acontece que o filho já tem hábitos e costumes próprios que não deseja mudar, nem aceita convencimento forçado. Para completar, tem um padrasto presente — dá pra ver da janela do barraco. É um padrasto muito problemático, mas que ajuda com uma assistência básica quando acaba o gás ou falta o dinheiro do remédio.
Pode parecer ficção para quem é de fora, mas qualquer favelado — ainda que não concorde com o resultado dessa relação — reconhece o realismo dessa analogia. O Estado da UPP e da Cidade Integrada, projetos desenvolvidos e executados em territórios de favelas sem qualquer diálogo com os moradores, é o pai biológico, autoritário e mandão, que some quando dá na telha e volta quando quer, oferecendo um presente que o beneficia, posa para foto em datas comemorativas como dias dos pais, natal e eleições, sobe as fotos para o Instagram e vai embora até que lhe seja conveniente retornar.
O Estado é o pai biológico, autoritário e mandão, que some quando dá na telha e volta quando quer, dá um presente que o beneficia, posa para foto em datas comemorativas, sobe as imagens no Instagram e vai embora até que lhe seja conveniente retornar
Ele não dá bons exemplos. A vida que o pai biológico leva, com suas casas, mansões e carrões do asfalto, está muito distante das possibilidades reais do filho favelado e bastardo. que vê da janela do barraco uma vida real. Não tem escola, plano de saúde ou torneio de futebol no domingo. Mas tem o padrasto passando de moto do ano, com roupa da moda e tênis do Neymar, enquanto chama ele e os demais para receber a distribuição de ovo da páscoa, refrigerante e bolo no dia das crianças e um brinquedinho que vai durar duas semanas, mas já é muito mais do que o pai biológico deu o ano todo.
O tal padrasto pode não dar afeto, mas o pai biológico também não dá, então esse jogo fica no zero a zero. Para quem nunca recebeu amor, pode ser difícil perceber a falta que ele faz. Mas o que falta em afeto sobra em autoridade e autoritarismo. Nisso os dois pais se equivalem: quem não conquista no amor e na admiração o faz por meio da força, e nisso a paternidade performada no século passado tira de letra. E nisso o filho Favela passa a vida apanhando dos pais, ora um ora outro, mas sempre com o mesmo modo de operação: eu mando, você obedece. Não há relação saudável que possa sair dessa estrutura familiar.
Toda essa analogia pode ser resumida na ideia propagada por quem estuda segurança pública e a história de construção do Rio de Janeiro: não é que o Estado não pode entrar onde o tráfico está, o tráfico entra onde o Estado escolheu não estar.
Se duvidar, leia sobre a constituição da Favela da Providência, na região central do Rio, que mostra como o Estado operou e a partir da sua ação e omissão, nasceu a primeira favela do Rio de Janeiro.
Dizem que filho feio não tem pai, né? Mas o Favela é a cara do biológico e do de criação. E sua rebeldia tem causa. Nome, sobrenome e origem. Nasce do abandono paterno, típico da sociedade brasileira, que deixa seus filhos e favelas à mercê da própria sorte. Quando eles não rendem fotos ou votos.