Mais de 30 milhões de brasileiros passam fome, mesmo patamar dos anos 1990

O MTST fez um ato de protesto junto de mais de 100 trabalhadores sem teto na região da Faria Lima, em São Paulo. A manifestação ocorreu na praça de alimentação do Shopping Iguatemi na hora do almoço desta quarta, 8 de junho, para chamar ao fato de que mais de 30 milhões de brasileiros passam fome no País. Foto:YURI MURAKAMI/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Estadão Conteúdo
08/06/2022 - Tempo de leitura: 5 minutos, 55 segundos

A fome no Brasil voltou a patamares registrados pela última vez nos anos 1990, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, lançado nesta quarta-feira, 8. Atualmente 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País; 14 milhões a mais do que no ano passado. A nova edição da pesquisa mostra ainda que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave).

Especialistas que participaram do levantamento dizem que o desmonte de políticas públicas por parte do governo, o agravamento da crise econômica, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para a piora do quadro. No ano passado, o número de brasileiros que não tinham o que comer era de 19 milhões. Em 2018, eram 10 milhões. A falta de acesso regular à água para beber e cozinhar, a chamada insegurança hídrica, também é um problema para 12% da população brasileira.

Desmonte de políticas públicas por parte do governo, o agravamento da crise econômica, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para a piora do quadro

“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o País do mapa da fome mundial)”, explica o coordenador da Rede Penssan, Renato Maluf. “As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.”

Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros [tirando o País do mapa da fome mundial] (Rodrigo MalufRede Penssan, Renato Maluf)

Como explica a gerente de programas da Oxfam-Brasil, Maitê Gauto a pandemia surgiu neste contexto de agravamento da pobreza e o estado não tinha mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram “sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos”.

A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado a patamares equivalentes aos de 2004. Este ano, o levantamento mostra que apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação; ou seja, são considerados em condição de segurança alimentar.

DE VOLTA À DÉCADA DE 1990
De acordo com os pesquisadores, os números atuais são similares aos do início da década de 90, quando o Brasil tinha 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou uma campanha nacional contra a fome

“O Auxílio Brasil não responde à altura do problema; embora seu valor seja maior do que o do Bolsa Família, a cobertura dele é bem menor”, explica Maitê Gauto, da Oxfam-Brasil. “Além disso, até o ano passado, um salário mínimo era suficiente para que a pessoa não entrasse em situação de fome; nesta pesquisa, isso já mudou, o valor da cesta básica já está batendo o do salário mínimo.”

FAMÍLIAS COM FOME I
33% das famílias brasileiras enfrentam algum grau de insegurança alimentar. A fome é maior…
…nas casas em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%)
…trabalha na agricultura familiar (22,4%) …tem emprego informal (21,1)

OUTROS DESTAQUES DA PESQUISA
Desigualdades social, racial e de gênero prevalecem nos resultados

  • Em média, 15% dos brasileiros estão abaixo da linha da pobreza
  • O porcentual chega a 25% e 21% no Norte e no Nordeste
  • 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com alguma restrição alimentar.
  • A fome saltou de 10,4% para 18,1% dos lares comandados por pretos ou pardos
  • Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%
  • Nos lares em que os homens são os responsáveis, o salto foi de 7% para 11,9%
  • A fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos; foi de 9,4% para 18,1%
  • A fome atinge 25,7% dos lares com três ou mais pessoas de até 18 anos
  • Onde só vivem adultos, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional

FAMÍLIAS COM FOME II
Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar arroz, feijão, vegetais e frutas nos últimos três meses, convivem com insegurança alimentar moderada ou grave. Entre as famílias que deixaram de comprar carne nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% estavam passando fome. Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%)

“Esse é outro problema sério”, diz a professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, Rosana Salles, pesquisadora da rede. “Estamos abrindo uma janela para o aumento dos índices de doenças crônicas na população por conta da alimentação ruim.”

QUEM NÃO PASSA FOME
Praticamente não há fome nas famílias com renda superior a um salário mínimo por pessoa. Em 67% desses domicílios, o acesso a alimentos é pleno e garantido. A segurança alimentar é maior…
…nos lares em que o chefe da família trabalha com carteira assinada (53,8%)
…entre os que têm mais de oito anos de estudo (50,6%)

“Reverter essa situação é um desafio muito grande”, constata Rosana Salles. “Vai depender da reestruturação das políticas de governo, das políticas de combate à fome e à miséria, da valorização do salário mínimo, do controle dos preços da cesta básica. Além, é claro, da reestruturação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea).”

Maitê Gauto lembra ainda que medidas emergenciais devem ser tomadas o mais rapidamente possível. “Precisamos de programas de proteção social e transferência de renda para que essas pessoas possam se manter com dignidade enquanto a recuperação econômica não acontece; precisamos garantir as condições mínimas de sobrevivência para as famílias”, diz. “É preciso também qualificar o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que também vem sendo desmontado.”

SOBRE A PESQUISA
A pesquisa é realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi, Ação da Cidadania ActionAid Brasil, Oxfam, entre outras instituições. Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos pelos 26 estados e o Distrito Federal. A pesquisa usa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), a mesma usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).