O suntuoso Palácio dos Campos Elíseos, na região central da capital paulista, abriu as portas no dia 26 de novembro para receber a população no Museu das Favelas, um novo equipamento público da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. A proposta é auxiliar na difusão da cultura de regiões marginalizadas e preservar a memória das favelas. O Expresso na Perifa conversou com moradores das periferias para saber o que pensam e esperam dessa iniciativa.
Para Kaio Barbosa Laurentino, de 25 anos, filósofo e agente cultural criado em Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, a existência do museu é pertinente numa sociedade em que espaços culturais são elitizados e o que é produzido na favela não é visto como “cultural”. Laurentino comenta que, em geral, as comunidades são vistas somente por suas mazelas, a exemplo da violência e da fome, sendo que existem potências artísticas e uma história. O filósofo reconhece que mostrar a produção dessas regiões não apaga a carência de políticas públicas para o bem-estar da população, mas ele espera que o museu exerça também a função de espaço de articulação — inclusive entre movimentos que surgem nas comunidades e têm pensamentos diferentes entre si.
Cleide Alves, de 58 anos, presidente da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, uma organização que surgiu em 1978 para lutar pelo direito à moradia, diz que achou ótima a “provocação” de o Museu das Favelas ser em um casarão luxuoso. “É uma coisa que parece que não dão permissão para a gente pisar, que a gente não sabe como entrar, mas a partir do momento que a gente entra, vemos que podemos estar aqui também”, diz, ao criticar a segregação e defender o direito à cidade de quem é pobre. Cleide afirma que pretende manter diálogo com a equipe do museu para que Heliópolis possa levar seus nomes e sua história ao local.
Quem também gostou do contraste foi o morador de Paraisópolis, outra grande favela da capital, Alexandre Cabral, de 42 anos. Cabral é fundador e coordenador de uma biblioteca comunitária criada em 1995 na comunidade, a Becei, e espera que o museu contribua para a diminuição de preconceitos contra quem vive nas favelas.
SOBRE O CASARÃO
O Palácio dos Campos Elíseos, no bairro de mesmo nome, foi projetado, em 1896, pelo arquiteto alemão Matheus Haüssler para ser a moradia do político e fazendeiro de café Elias Antônio Pacheco e Chaves. O imóvel que tem mais ou menos 4 mil metros quadrados foi concluído em 1899 com elementos inspirados no renascimento italiano e na arquitetura francesa. Em 1912, a propriedade foi comprada pelo governo de São Paulo. O processo de tombamento histórico ocorreu na década de 1970. O palácio também já hospedou integrantes famosos da elite internacional, por exemplo, Dwight Eisenhower (1890-1969), presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961, e o príncipe Philip (1921-2021), duque de Edimburgo e marido da rainha Elizabeth 2ª (1926-2022), do Reino Unido. Ocupado por ricos fazendeiros de café, Campos Elíseos foi o primeiro bairro projetado na cidade de São Paulo e contou com o trabalho do engenheiro alemão Hermann von Puttkamer no projeto.
Segundo Carla Zulu, coordenadora de relações institucionais do Museu das Favelas, ocupar o Palácio dos Campos Elíseos é mostrar que essa arquitetura servirá para visibilizar aqueles que em outros momentos foram postos para fora desse espaço.
O professor de história Thiago Kairu, de 37 anos, morador do Campo Limpo e ativista no movimento negro Baobá Fortificando Raízes, espera que o museu contribua para que a população enxergue as potencialidades das favelas sem esquecer as dificuldades que essas regiões vivem. “[O museu] pode trazer uma perspectiva narrativa muito importante que é mostrar o quanto de possibilidades intelectuais construtivas são criadas na quebrada”, diz. Kairu também ressalta que o museu é importante para reforçar a representatividade. “[Por exemplo] eu que sou aqui da zona sul. Sou aluno da zona sul. Chego lá no museu e vejo que uma molecada parecida comigo lá da zona leste está fazendo um negócio que está [exposto] ali no museu. Isso reforça laços, isso reconecta a uma noção de dignidade que vem sendo tirada da gente”, exemplifica.
No entanto, Kairu se preocupa sobre como a população mais pobre conseguirá frequentar o espaço. No caso das escolas, por exemplo, Kairu ressalta que é necessário que a gestão escolar enxergue as saídas pedagógicas, o que costumamos chamar de passeios ou excursões, como algo importante na construção do estudante como ser humano. Para Kairu, a sensibilização dos gestores é muito importante.
Um dos projetos da casa é o Passaporte das Favelas, que oferece ônibus gratuito para buscar grupos que estejam a até 80 quilômetros de distância e queira visitar o museu. O benefício é válido para escolas, centros culturais, ONGs, igrejas, terreiros, grupos de amigos, etc. Basta formar uma turma de no mínimo 20 pessoas e entrar em contato por e-mail.
Visitação e representatividade — A coordenadora Carla Zulu ressalta que já é feito um trabalho para conscientizar a população sobre a existência do museu por meio de visitas a comunidades. A respeito da representatividade, ela explica que a equipe gestora é predominantemente formada por pessoas das periferias e ou negras. “Pensamos nessas contratações para poder pensar em um museu que tivesse acima de tudo representatividade. E, então, conseguisse ser esse lugar de pertencimento para pessoas iguais a nós”, completa.
O Museu das Favelas já recebeu ao menos 4 mil visitantes desde a inauguração, sendo que aproximadamente 800 vieram pelo programa Passaporte das Favelas.
Quem visita o espaço se depara com exposições já na área externa. No jardim, por exemplo, há uma instalação do mineiro Paulo Nazareth. Trata-se de uma escultura de alumínio de seis metros de altura que retrata a sergipana Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), mulher negra, historiadora, poeta e ativista.
Outra instalação mostra o resumo da história do Palácio dos Campos Elíseos com artes em serigrafia produzidas pelo Coletivo XiloCeasa, formado por moradores de comunidades localizadas na zona oeste de São Paulo. Em algumas janelas há banners com informações sobre favelas.
Na parte interna, logo na entrada há esculturas de crochê criadas pela artista paranaense Lídia Lisbôa com a colaboração de integrantes do Coletivo Tem Sentimento – que atua na cracolândia, no centro de São Paulo, para oferecer aulas de corte, costura e economia criativa para mulheres cis e trans em situação de vulnerabilidade social –, e da Cooperativa Sin Fronteras, grupo de costureiras migrantes bolivianas.
Em uma sala, há a instalação audiovisual sensorial “Visão Periférica”, que mostra imagens em movimentos de favelas registradas por 20 fotógrafos de diversas periferias do Brasil. Em outros ambientes, está a exposição “Identidade Preta: 20 anos de Feira Preta” sobre o evento que valoriza a cultura e o empreendedorismo da população negra e periférica. A entidade também conta com uma biblioteca com livros escritos por pessoas negras e das periferias.
Carla Zulu reforça que a necessidade de contribuir para o fim da exclusão social e que o ideal é que as favelas com dificuldades só existam em museus.
Serviço – Horário: Ter. a dom., das 9h às 17h (permanência até 18h) | Onde: R. Guaianases, 1.024, Campos Elíseos, Centro | Preço: Gratuito | Tel: (11) 4240-3355 | E-mail para agendamento do Passaporte das Favelas: agendamento@museudasfavelas.org.br | *O museu não abre nas vésperas e feriados de Natal e Ano-Novo