Na Bahia, trabalhadores informais lutam contra a remoção do comércio de rua

Elizete Santos, de 53 anos, trabalha desde os oito na Feira da Marechal. Ela diz que os camelôs foram enganados com a promessa do shopping popular. “Na verdade, o serviço é privado e quem não paga as taxas tem as mercadorias retidas, sendo impedido de acessar o espaço”, afirma. Foto: Jaqueline Ferreira

14/10/2021 - Tempo de leitura: 6 minutos, 23 segundos

Em abril de 2020, em Feira de Santana (BA), começaram as obras do Novo Centro, que anunciava a requalificação de ruas e calçadas da região. Orçada em R$ 37 milhões, a mudança começou ao mesmo tempo em que aumentava no município o número de infectados pela Covid-19.

Logo nos primeiros dias, o que se viu foi a remoção de camelôs e ambulantes que ocupavam as ruas mais movimentadas, como a Marechal Deodoro, a Sales Barbosa e a Bernardino Bahia. A ação atinge em cheio a Feira da Marechal, que cumpre o papel de escoar os produtos de agricultura familiar dos distritos de São José, Maria Quitéria e Humildes, entre outras comunidades rurais e quilombolas do entorno.

Segundo a prefeitura, todos os comerciantes deveriam ser realocados para o novo shopping popular Cidade das Compras, fruto de uma parceria público-privada, as feiras de bairros ou o centro de abastecimento local, mas na ausência de organização, diálogo e apoio do poder público a situação para os trabalhadores é de desamparo e prejuízo.

Representante do Movimento Trabalhadores do Centro, Edineide Ribeiro explica que o local destinado aos feirantes nos fundos do centro de abastecimento da cidade tem problemas graves de acessibilidade, falta de estrutura básica, sujeira, infiltração, dejetos de animais, telhados quebrados e alagamentos nos períodos de chuva. Foto: Jaqueline Ferreira

Centro de distribuição

Representante do Movimento Trabalhadores do Centro, criado para divulgar a luta da classe informal, Edineide Ribeiro, de 38 anos, explica que o local destinado aos feirantes nos fundos do centro de abastecimento da cidade tem problemas graves de acessibilidade, falta de estrutura básica, sujeira, infiltração, dejetos de animais, telhados quebrados e alagamentos nos períodos de chuva.

Edineide é feirante, moradora do distrito de Humildes e vive da agricultura familiar para sobreviver. Perdeu o emprego há 5 anos e se tornou feirante para obter renda. “A gente quer uma feira padronizada, organização, mas também com as pessoas trabalhando e sustentando suas famílias, e não um centro da cidade organizado, bonito, mas com pessoas passando fome em casa”, diz.

“Nós, feirantes, estamos dispostos a ter um diálogo com a prefeitura. Só que a prefeitura não dá um retorno, ignora a gente. Nós deixamos bem claro que não queremos ir para centro de abastecimento, não queremos feira de bairro, porque não é viável, isso já foi provado por nós, feirantes, pelos clientes e pelo poder público”, emenda. “O que nos resta agora é lutar pelo nosso espaço de trabalho, pela garantia do nosso sustento e de nossas famílias, pois é daqui que tiramos nosso dinheiro”.

O vendedor de frutas Ademario Momona Assunção tem 65 anos de idade e mais de vinte no comércio popular de rua. Ele conta que já enfrentou outras ameaças de expulsão. “A cidade nasceu de uma feira”, diz. “Como é que quer tirar a identidade da cidade, se tem feira até no nome? O prefeito chega dizendo que ama Feira. Ama nada, porque quem ama não destrói, não expulsa.”

Como é que quer tirar a identidade da cidade, se tem feira até no nome? O prefeito chega dizendo que ama Feira. Ama nada, porque quem ama não destrói, não expulsa
Ademário Momona Assunção, vendedor de frutas

Shopping popular

No shopping popular Cidade das Compras, foram oferecidos 1.800 boxes de um a cinco metros quadrados. O galpão fica em frente à Estação de Transbordo Central, tem estacionamento e sanitários, mas, ainda assim, é alvo de denúncias: trabalhadores informais e lideranças argumentam que as condições de reacomodação são inviáveis, como a insuficiência de espaço para os camelôs e ambulantes que estavam nas ruas requalificadas e a cobrança de aluguel (R$ 80) e condomínio (R$ 28). Pessoas ouvidas pela reportagem falam em falta de segurança e infraestrutura decadente. As vendas caíram, sobretudo por causa da pandemia.

Elizete Santos, de 53 anos, trabalha desde os oito na Feira da Marechal. Ela diz que os camelôs foram enganados com a promessa do shopping popular. “Na verdade, o serviço é privado e quem não paga as taxas tem as mercadorias retidas, sendo impedido de acessar o espaço”, afirma.

Vontade política

O vereador mais votado da cidade nas eleições passadas, Jhonatas Monteiro (PSOL), está em diálogo com as trabalhadoras e os órgãos responsáveis. “Além do sustento imediato das pessoas que estão ali, tem a relação com a agricultura familiar. É uma atividade que, a exemplo de outros municípios, que fizeram a escolha pela permanência de feiras em áreas centrais, pode ser compatibilizada”, diz. Para Jhonatas, se houver vontade política é possível mudar o destino dos ambulantes, feirantes e camelôs que encontram suas rendas ali.

“E nós sabemos que o lugar é inadequado. Queremos organização e temos um projeto para que a cidade fique arrumada, fique limpa, mas com a gente dentro desse projeto”, afirma Giscleide Dias de Carvalho. Foto: Jaqueline Ferreira

Projeto alternativo

Trabalhadora da Marechal há mais de vinte anos, Giscleide Dias de Carvalho, de 39 anos, diz que em nenhum momento os comerciantes foram levados ao lugar destinado e eles para conhecer e demarcar o espaço. “E nós sabemos que o lugar é inadequado. Queremos organização e temos um projeto para que a cidade fique arrumada, fique limpa, mas com a gente dentro desse projeto”, afirma.

Giscleide se refere a um projeto alternativo que viabiliza a permanência da Feira na Marechal. A proposta é baseada na tese Reconfiguração da Rua Marechal Deodoro e seu Entorno. O trabalho foi defendido em 2020 pela estudante de urbanismo Mariana Amaral e demonstra que é possível conciliar a existência da Feira, organizada e padronizada, com a estrutura adequada.

O engenheiro urbanístico Allan Pimenta, orientador de Mariana na universidade, explica que o projeto alternativo foi realizado de forma democrática, ouvindo lojistas, feirantes, pedestres e a própria prefeitura. Houve, na avaliação de Allan, preocupação na busca por uma solução mais democrática possível, com a organização da feira livre. Todos os feirantes entrevistados na época relataram o desejo de permanecer e organizar, sendo que 68% dos lojistas mencionaram medo de perder clientes com a expulsão dos feirantes, e por isso preferiram a organização. “A prefeitura não incluiu as solicitações dos feirantes, o que é ilegal, visto que a gestão democrática de um projeto de urbanismo é obrigatória segundo o Estatuto da Cidade”, diz o engenheiro.

Em entrevista, Carlos Brito, Secretário de Planejamento de Feira de Santana, diz que “ali não é lugar de feira. Ali é um lugar para andar, para a comunidade andar, ir e vir”. Afirmou ainda que os feirantes deverão se retirar com as opções de realocação oferecidas. A prefeitura também foi procurada para responder às críticas, mas não retornou.

Informalidade no Brasil

De acordo com o relatório mensal da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), em maio de 2020 aproximadamente 32 milhões de pessoas estavam em situação de informalidade no Brasil, sendo que a taxa de desocupação na Bahia foi de 21,3%, no primeiro trimestre deste ano, situação agravada por consequência da crise sanitária.

Nos dados levantados em 2017 pela Associação Comercial e Empresarial de Feira de Santana, 34% dos trabalhadores da área comercial da cidade já viviam do trabalho informal, número que, segundo lideranças, aumentou.