Nas favelas do Rio, saúde mental piora na pandemia

Lidar com transtornos psicológicos é um problema invisibilizado no cotidiano de muitos moradores de favelas submetidos a uma rotina concreta de violência simbólica (através da negação de direitos básicos) e física (tiroteios e violência policial). Foto: Bento Fabio/Coletivo Papo Reto
Nataly Simões
30/09/2021 - Tempo de leitura: 5 minutos, 15 segundos

Violência do Estado e medo do coronavírus pesaram na saúde mental da população; uso de substâncias psicoativas como refúgio da difícil realidade aumentou

Álcool, cigarro e medicamentos tarja preta, entre outras substâncias lícitas e ilícitas, estão entre as drogas mais consumidas pelas populações das favelas do Rio de Janeiro nesses mais de 18 meses de pandemia, em que a rotina é marcada pela violência do Estado e o medo de se infectar e morrer de covid-19.

É o que revela a pesquisa inédita Coronavírus nas Favelas: a Desigualdade e o Racismo sem Máscaras, divulgada no dia 27 de setembro. O relatório, elaborado pelo coletivo Movimentos, aponta como a soma da violência provocada pela guerra às drogas e os riscos do período pandêmico afetaram a saúde mental dos moradores de três grandes favelas da capital fluminense: Complexo do Alemão, Complexo da Maré e Cidade de Deus, que juntas somam uma população de quase 240 mil habitantes.

PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL QUE APARECEM NAS RESPOSTAS MÚLTIPLAS DOS MORADORES

  • Distúrbio do sono: 76%
  • Depressão: 43,1%
  • Ansiedade: 34%
  • Outros sentimentos: tristeza, medo, pânico, pensamentos negativos, dores e palpitação

Diante de uma situação de marginalização da população mais pobre e a falta de acessos a direitos básicos, 76% dos moradores declararam ter algum distúrbio do sono e 43,1% algum nível de depressão. A ansiedade é citada por 34% dos entrevistados como o sentimento mais presente na pandemia. Outros sentimentos elencados foram: tristeza, medo, pânico, pensamentos negativos, dores e palpitação acima da média.

“A pandemia afetou a saúde mental da população inteira de modo geral, mas a população das favelas, que sabe que tem menos recursos para lidar com essa situação, sabia que a possibilidade de perder um parente era gritante e também de perder a própria vida”, afirma Aristênio Gomes, coordenador do Movimentos e morador do Complexo da Maré. “Eu acredito que isso impactou absurdamente a saúde das pessoas, que acabaram revelando traços de depressão, tristeza profunda e ansiedade.”

A Maré, na zona norte, tem o maior número de casos de covid em favelas do Rio. São 8.826 e 354 mortes. Os dados são do Painel da covid-19, do coletivo Voz das Comunidades

Gomes detalha ainda o fato de a população das favelas ser violentada diariamente na ida ao trabalho e aos estudos. “Essas pessoas que já sofrem uma violência constante de possibilidade de morte têm um entendimento de possibilidade de morrer até mesmo ao ir comprar pão. Consciente ou inconscientemente, desenvolve patologias mentais que são ignoradas pelas instituições públicas.”

DESEJO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS

  • Álcool: 45%
  • Remédios tarja preta: 19%
  • Cigarro: 18%
  • Inalantes: 16%
  • Maconha: 12%

A rotina difícil torna agudo o desejo de buscar refúgios a essas situações de alta insegurança. Sobre o desejo de experimentar substâncias psicoativas, o álcool foi o mais citado, aparecendo em 45% das respostas dos moradores das favelas, seguido por remédios de tarja preta (19%) — como calmantes —, cigarro (18%), inalantes (16%) – como lança-perfume, lolo etc. – e maconha (12%).

40% das pessoas afirmam ter consumido algum tipo de remédio por conta própria durante a pandemia. Apenas 4% usaram ivermectina e hidroxicloroquina como tratamento precoce à covid-19

“Esses dados, como o da automedicação, escancaram as dificuldades de acesso da população a serviços públicos de saúde”, afirma a psicóloga Natália Aparecida da Silva, fundadora do Grupo Reinserir, projeto de atendimento psicológico voltado a pessoas periféricas. “Ouço dos meus pacientes, principalmente os negros, que há muito medo de contágio e até do uso da máscara para não ser ‘confundido’ com criminoso. Aí o tempo de espera para uma consulta com psiquiatra pode demorar até nove meses, tempo considerável para passar com sintomas de ansiedade e depressão”, diz Natália.

Outras faces

O estudo reforça ainda que lidar com transtornos psicológicos é um problema invisibilizado no cotidiano de muitos moradores de favelas submetidos a uma rotina concreta de violência simbólica (através da negação de direitos básicos) e física (tiroteios e violência policial).

OPRESSÕES VIVIDAS NO DIA A DIA DAS FAVELAS

  • Ter de portar documentos para comprovar inocência em abordagens policiais
  • Ter a capacidade intelectual questionada
  • Ser vigiado ao entrar em lojas e supermercados
  • Lidar com a violência e seus desdobramentos psicológicos

A pesquisa aponta que situações cotidianas, a exemplo das que estão listadas no quadro acima, afetam muito a saúde mental de moradores de favelas, majoritariamente negros. Por isso, falar de saúde mental nesses territórios, onde o acesso a tratamentos de psicoterapia e psiquiatria são estigmatizados e dificultados, é um grande desafio.

Mesmo com a pandemia, a violência provocada pelo próprio Estado não mudou. Em junho de 2020, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), chegou a proibir por meio de liminar as operações policiais no Rio de Janeiro. O texto permitia operações somente nas chamadas hipóteses excepcionais e sob a justificativa por escrito ao Ministério Público (MP-RJ). Como resultado da restrição, o número de mortos por armas de fogo diminuiu 30%, segundo estudo realizado pela plataforma Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Já em 2021, o governo estadual passou a desrespeitar a liminar do STF e entre as consequências da retomada de operações policiais está a chacina mais letal da história do Rio, a do Jacarezinho, que deixou 28 mortos.

“Além de estarem marginalizados e violentados o tempo todo pelas ações policiais, muitos moradores (37%) não conseguiam acessar os serviços de saúde, o que causou um desespero total. A soma de tudo isso gera os mais diversos transtornos mentais, que muitas vezes precisam ser ignorados por essa população que tem seguir a vida e trabalhar no dia seguinte.” A conclusão é de Aristênio Gomes, coordenador do Movimentos,  coletivo responsável pela pesquisa Coronavírus nas Favelas: a Desigualdade e o Racismo sem Máscaras e que teve os resultados abordados nesta reportagem.