No fim do ano passado, com o retorno do trabalho presencial, voltei a andar de ônibus todos os dias. Em meu caminho, reparei que, dormindo em um ponto de ônibus, todos os dias ficava um rapaz. E eu o reconheci. Um colega de infância da escola, Cristiano.
Foi muito chocante e difícil para mim passar todos os dias pelo trajeto e ver que ele estava lá, dormindo no banco do ponto, enrolado em um cobertor, com roupas esfarrapadas, cabelo sujo, pele seca, olhar triste.
Nós estudamos juntos na 2ª e na 3ª série do Ensino Fundamental. Lembro que, apesar de criança, Cristiano já ajudava a família na feira livre do bairro, vendendo verduras. Além das aulas diárias, aos sábados sempre o encontrava divulgando os produtos quando acompanhava minha mãe nas compras. Era extrovertido, comunicativo, falava alto, cantava.
Na escola me lembro que mantinha o mesmo comportamento. Nós fazíamos algumas tarefas juntos, compartilhamos os resultados dos exercícios. Me recordo que, já naquela época, era possível perceber que ele passava por dificuldades financeiras. Ao invés de usar cola, por exemplo, usava arroz cozido para juntar os papéis nas tarefas.
Nossos caminhos se separaram desde aqueles anos da infância. Eu nunca mais tinha tido contato ou ouvido falar de Cristiano. Não sei os motivos — econômicos, familiares, psicológicos — que podem ter contribuído para que ele estivesse em situação de rua.
Segundo levantamento da Prefeitura de São Paulo, nos últimos dois anos a população que vive nas ruas aumentou 31%, são cerca de 32 mil pessoas em toda a cidade. A crise econômica e a pandemia da Covid-19 intensificaram este problema social que parece cada vez mais complexo. Vejo famílias inteiras morando nas ruas, desabrigadas, alojadas em barracas, relegadas de seus direitos que, pela nossa Constituição, deveriam ser assegurados.
No dia de Natal, coloquei um pouco de comida em uma vasilha e fui ao encontro de Cristiano. Chegando lá, não tive coragem de perguntar se ele se lembrava de mim, como eu dele. Perguntei se queria a marmita, e ele recusou. Me disse que já tinha conseguido alimento, que não precisava. Não sei se era verdade ou orgulho. Saí de lá chateada, mas acabei entregando a comida para um catador de recicláveis que passava na rua.
Já faz umas semanas que não vejo mais Cristiano no ponto de ônibus. Agora, me preocupo novamente com o que pode ter acontecido a ele. Espero que a mudança tenha sido para melhor. Que esteja vivo e bem.
Dói muito pensar que eu e Cristiano iniciamos nossas trajetórias no mesmo lugar, e hoje estamos em situações e condições tão diferentes. A todo momento me questiono se poderia ser eu naquele banco no ponto de ônibus. É inevitável imaginar que eu e qualquer um dos meus está sujeito a estar nesse lugar, de um dia para o outro.
Para quem não é pobre e periférico é mais fácil o distanciamento, a abstração dessa realidade e, ao mesmo tempo, é mais difícil entender que é necessário que todos nós discutamos e enfrentemos o problema, tentemos, com solidariedade e, sobretudo, posicionamento político, ajudar e defender esta população.
Constantemente leio e presencio julgamentos, falsas soluções para eliminar a população da região da Cracolândia. O discurso sempre tende para a limpeza e segurança da região, sem solucionar o sofrimento dos que estão vivendo naquelas condições.
Enquanto não visualizarmos com mais empatia e humanidade todas essas pessoas, que têm histórias de vida únicas, elas só continuarão a fazer parte da triste paisagem da nossa cidade.