Para ativistas indígenas, descaso com abuso sexual de meninas fortalece a violência

Comunidade ianomâmi de Aracaçá, em Roraima. Foto: Hutukara Associação Yanomami/Divulgação

21/05/2022 - Tempo de leitura: 5 minutos, 29 segundos

“Desde o descobrimento do Brasil a gente vê que nossas crianças indígenas foram estupradas, violentadas. Os portugueses chegaram aqui, usaram as nossas indígenas como objeto sexual para eles. O Brasil foi invadido e quebrou-se a liberdade do nosso povo indígena.” A fala é de Eleonora Pereira da Silva, defensora dos direitos humanos e pertencente ao povo Tabajara. Ativista de João Pessoa (PB), ela tem um extenso trabalho de denúncia de exploração sexual de meninas nas periferias. Por essa atuação, já recebeu ameaças de morte e teve seu filho assassinado em 2010. Ele lutava junto à mãe.

Além de histórica, a violência contra meninas e mulheres indígenas é recorrente e “foi acatada pela sociedade brasileira como algo normal. Foi invisibilizada”, afirma Avelin Buniacá Kambiwá, professora, socióloga, e especialista em gênero e raça.”Tentaram fazer com que as questões da mulher indígena fossem simplesmente da própria comunidade.” Avelin é da aldeia Baixa da Índia Alexandra, que fica entre as cidades de Inajá e Ibimirim, em Pernambuco. Atualmente, vive em Belo Horizonte (MG).

Nas últimas semanas, o Brasil acompanhou a notícia de que garimpeiros sequestraram, estupraram e mataram uma menina indígena de 12 anos da comunidade Aracaçá, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. “O que foi relatado nos últimos dias é só a ponta de um iceberg, de uma situação de penúria que já vem se arrastando por mais de trinta anos”, diz Avelin. “A revolta e a dor vêm do descaso e da invisibilidade. Do pensar que nós não valemos nada, e que uma grama de ouro vale mais do que a vida de uma criança Yanomami.”

No relatório Yanomami sob Ataque: Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami e Propostas para Combatê-lo, feito pela Hutukara Associação Yanomami e publicado em abril de 2022, relatos mostram que garimpeiros bêbados têm invadido casas, assediado mulheres e oferencido comida em troca de sexo com adolescentes.

A ativista indígena, antropóloga e arte educadora Pietra Dolamita, que atua pela demarcação das terras indígenas, aponta a responsabilidade do Estado. “Não são apenas os garimpeiros que estão estuprando e matando as crianças e as mulheres indígenas. É o Estado que está fazendo isso. É a mão do Estado que coloca todo esse peso sobre nós’, diz Pietra. “Não existe uma proteção legal dos nossos corpos. Quando surgem leis, elas não nos contemplam, porque as mulheres indígenas sempre foram colocadas em pautas precárias diante de qualquer movimento feminista ou de igualdade ou de relações sociais.”

Desigualdade e discriminação — Pietra alerta, ainda, para dois problemas que fragilizam a população feminina dos povos originários: primeiro, os muitos obstáculos enfrentados por mulheres indígenas ao buscar atendimento do Estado — há dificuldade de acesso a locais de denúncia e problemas com o português. “Muitas vezes, elas são discriminadas pelo próprio sistema”, diz a ativista.

Outro ponto, acrescenta Pietra, é o fato de a Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, não ampara mulheres indígenas.

Nesse sentido, Eleonora lembra que, na própria sociedade dos povos tradicionais, um ensinamento recebido diz  que a mulher não conseguirá viver sem o homem, por ele ser o provedor da família. “Muitas são mortas com esse pensamento’”, diz a defensora dos direitos humanos. “Minha vó dizia: ‘minha filha, sem ele você não consegue ser nada’. E eu dizia: ‘se eu estudar, eu vou ser’.”

Combate à violência — Além de políticas de acolhimento, punir os criminosos na legislação existente é, na avaliação de Pietra, uma forma de combater as violências cometidas contra meninas e mulheres.

Para a socióloga Avelin, o primeiro passo é denunciar os casos e debater o assunto. “O segundo é proteger meninas e mulheres indígenas a partir das práticas usadas no mundo ocidental: empoderamento financeiro, formação, direito ao controle de natalidade, aos métodos contraceptivos, ao estudo e à escolha de não casar jovem”, acrescenta.

A informação e a conscientização sobre respeito ao corpo da mulher são pilares para combater a violência sexual, segundo Eleonora. Profissionais treinados para identificar sinais de violência, envolvimento da escola, políticas públicas e conselho tutelar sensibilizado para o assunto são outros pontos citados para esse enfrentamento.

‘SER CONTRA O GARIMPO ILEGAL É DEFENDER A HUMANIDADE’

No relatório da Hutukara Associação Yanomami há o seguinte depoimento de uma mulher indÍgena: “Os garimpeiros têm sempre uma louca vontade de transar. Quando as pessoas disseram que eles se aproximavam, eu fiquei com medo. Por isso, desde que ouço falar dos garimpeiros, eu vivo com angústia”.

A pesquisa informa que de 2016 a 2020 o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami cresceu 3350%.

Segundo o MapBiomas, projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil, a Amazônia concentra 94% do total de áreas garimpadas no País. Cerca de 50% do garimpo ilegal ocorre em áreas protegidas.

Entre os perigos impostos pelo garimpo ilegal aos povos indígenas, Avelin cita exploração sexual, escravização, contaminação da água com mercúrio, mudanças no modo de vida e inserção de álcool e drogas nas culturas desses povos. “Para o Brasil como um todo, eles [garimpeiros] estão espalhando um ouro com sangue, um ouro amaldiçoado. Estão levando para a população brasileira um fardo, um carma de sofrimento, um peso de estar carregando a morte do nosso povo”, alerta a socióloga.

Pietra chama atenção para a grande rede de exploração formada por empresas que financiam o garimpo e os danos ambientais. “Quando somos contra o garimpo, a exploração, a monocultura dentro dos territórios amazônicos, estamos dizendo que somos contra a extinção da própria humanidade, porque já tem pesquisas científicas que falam da necessidade de se manter a floresta em pé.”

Avelin concorda: “A população brasileira precisa se inteirar e fazer parte dessa luta porque nós estamos protegendo a biodiversidade do planeta. Nós somos poucos e protegemos tanto a terra e protegemos tanta riqueza. O direito dos povos indígenas é o direito da mãe terra, é o direito da mulher, é o direito da criança, é o direito de um futuro para população não só do Brasil como do mundo”, conclui.