Um sítio histórico foi encontrado na área da futura estação 14 Bis, no Bexiga, na região central da capital, durante as atividades de monitoramento arqueológico das obras da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo. O local fica às margens do córrego Saracura (afluente hoje canalizado do Rio Anhangabaú), que, no século 19, abrigou quilombolas em seu entorno.
Com a descoberta, o movimento negro e moradores organizaram uma mobilização que reivindica a criação de um memorial educativo permanente no local. Pede também a mudança do nome da futura estação para “Saracura Vai-Vai”.
“É o primeiro registro do Quilombo Saracura em documentação escrita oficial”, conta o historiador e arqueólogo Alessandro Luís Lopes de Lima. No início do século 20, de acordo com publicação do jornal Correio Paulistano, de 3 de outubro de 1907 a região da Saracura era conhecida como a “Pequena África”.
O sítio arqueológico Saracura/14 Bis foi cadastrado em abril deste ano no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O cadastro foi feito pela A Lasca — empresa contratada pela concessionária Linha Universidade para fazer o monitoramento arqueológico das obras da Linha 6-Laranja do Metrô.
O sítio fica entre as Ruas Dr. Lourenço Granato e Manoel Dutra e sua intersecção com a Praça 14 Bis. Inicialmente, foram encontrados objetos característicos de áreas de descarte, como garrafas e louças. Esses materiais datam da transição do século 19 para o 20 e primeira metade do último.
A empresa A Lasca classificou os primeiros vestígios do Saracura como de alta relevância e recebeu autorização do Iphan para resgatar o sítio emergencialmente. A previsão é que a escavação ocorra a partir do fim de agosto e durante setembro. Como os materiais mapeados estão soterrados a partir de 3 metros de profundidade, neste momento a Linha Uni faz obras de contenção para garantir a segurança.
MEMÓRIA
Depois da pesquisa arqueológica, será possível compreender em profundidade a relação do sítio descoberto com o Quilombo Saracura e com a ocupação do bairro do Bexiga. Em correspondência com o Iphan/SP, datada de 30 de junho, a empresa afirmou tratar-se de “significativo local de memória para a história da cidade”, sobretudo para as “comunidades africanas e afrodescendentes” que, segundo o texto, passaram por sucessivos processos de apagamento de sua história e cultura desaparecessem.
Pela preservação do sítio, o movimento negro e moradores do Bexiga se organizaram no Mobiliza Saracura Vai-Vai. Em manifesto explica que a praça em frente à futura estação já é símbolo da “genialidade de Santos Dumont e seu 14 Bis”. Prega agora uma homenagem à história de resistência do quilombo e da tradicional escola de samba Vai-Vai. Defende ainda que os achados arqueológicos sejam expostos na própria estação ou no bairro, com um projeto sobre o quilombo Saracura.
“Não basta resgatar o sítio do local e mandar para um arquivo ou mesmo para um museu de arqueologia da cidade, porque tiraria da comunidade a possibilidade de conhecer esse processo arqueológico”, afirma Luciana Araujo, jornalista, moradora do Bexiga e integrante do movimento.
QUILOMBO
O sítio foi identificado na baixa e média vertente do córrego Saracura, um afluente direto do ribeirão Anhangabaú. Ambos foram canalizados e soterrados com a urbanização do Vale do Anhangabaú e do bairro do Bexiga. No século 19, porém, junto ao córrego ficava o Quilombo Saracura – um dos maiores e mais antigos de São Paulo.
Na época, o vale do Saracura era um local estratégico para se esconder e ocupar. Não somente pelas nascentes de água, mas também porque havia uma vegetação muito densa, a do Caaguaçú, que servia como fonte de alimento para os quilombolas. Uma ata da Câmara Municipal, de 1831, pedia o fechamento dos caminhos por onde corria o Rio Anhangabaú e seus afluentes. O documento alegava que ali, habitavam “ladrões e escravizados foragidos”.
LOUÇAS E TRILHO DE BONDE
Um trilho de bonde, uma galeria subterrânea, louças variadas, vidros de medicamentos, brinquedos em meio a restos fabris e possíveis resquícios de um quilombo urbano. Esses são alguns dos milhares de achados arqueológicos encontrados desde o início de 2021 na cidade de São Paulo. Os itens são dos séculos 19 e 20, colhidos nas obras da Linha 6-Laranja. Até agora, foram registrados nove sítios arqueológicos no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a maioria no distrito Lapa, em bairros como Água Branca e Pompeia.
O número pode aumentar com avanço das escavações, ainda iniciais no centro paulistano, por exemplo. O caso da futura Estação 14 Bis, que achou sinais possivelmente ligados ao Quilombo Saracura é o mais recente.
Diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Eduardo Neves explica que a maior parte da Arqueologia feita no País envolve avaliações para licenciamento ambiental e monitoramento de grandes empreendimentos e obras de infraestrutura.
“Basicamente, quem faz Arqueologia é (majoritariamente) por causa de obras de licenciamento, do Metrô, do Rodoanel”, disse. Ele afirmou ainda que mesmo achados de períodos mais recentes, como os séculos 19 e 20, podem contribuir para a memória da cidade. “O estudo da materialidade dos objetos pode trazer perspectivas de populações que não escreviam sobre si, sobre padrões de consumo, pode trazer uma contraposição ao que foi dito e escrito até então sobre uma população.”
Nas obras da Linha 6-Laranja, a maioria dos achados é de louças, vidros e cerâmicas encontrados em áreas no entorno do Rio Tietê, incluindo as futuras estações Santa Marina e Sesc Pompeia, e poços de ventilação. Em sítio na Água Branca, batizado de Santa Marina II, 1.411 artefatos foram selecionados como de interesse arqueológico. Há fragmentos de vasos, tampas, tigelas, tachos, pratos, moringas e panelas, além de um poço, cisterna e estrutura de saneamento.