Tarciane Pereira só não viu faltar comida na mesa durante a pandemia porque mora próximo à família, na comunidade de Jandaiguaba, em Caucaia, no Ceará. Na casa dela moram o marido e os dois filhos, Matheus e o irmão mais novo, de 3 anos. Tarciane está sem renda desde o início da pandemia, quando trabalhava como doméstica. O pai de Matheus trabalhava com serviços gerais no início da pandemia e hoje em dia vive de “bicos”.
Outros alunos da Escola Municipal Indígena Abá Tapeba, que começou com uma creche para 135 alunos, passam pela mesma situação. Conviver com a fome foi o principal desafio trazido pela pandemia, diz a coordenadora pedagógica da escola, Roberta Kelly. “Aqui na comunidade temos uma realidade onde a primeira refeição de algumas crianças é feita na escola. Teve um momento que chegamos a arrecadar alimentos para doações, e aí foi quando o município começou a usar o dinheiro da merenda para fornecer essas cestas básicas para as crianças”, conta.
Aqui na comunidade temos uma realidade onde a primeira refeição de algumas crianças é feita na escola. Teve um momento que chegamos a arrecadar alimentos para doações, e aí foi quando o município começou a usar o dinheiro da merenda para fornecer essas cestas básicas para as crianças
Roberta Kelly, coordenadora pedagógica Escola Municipal Indígena Abá Tapeba, no Ceará
Atualmente, a escola recebe as cestas básicas da prefeitura todo mês e, semanalmente, uma doação de leite é realizada pelo Mesa Brasil. Os alimentos são repassados para as famílias para tentar amenizar esse impacto na aprendizagem. “São crianças que vivem em uma comunidade de vulnerabilidade, que vem crescendo ao longo dos anos. A fonte de renda da maioria das famílias da comunidade são os benefícios sociais e trabalhos informais, isso não traz uma qualidade de vida”, ressalta Roberta.
Entre as dificuldades, está a de localizar e acompanhar quem está em situação de fome. “A importância dessas crianças estarem nas escolas é que podemos acompanhar a rotina delas. A gente consegue ajudar de uma melhor forma, mas à distância, às vezes, a família tem vergonha de vir. E aí algumas deixam de ser ajudadas”, explica Roberta, ao lembrar de diversas vezes em que pais de alunos foram até a escola em busca de alimento.
Na Escola Estadual Indígena Bento Pingola, dentro da Terra Indígena Guarita, no Rio Grande do Sul, a professora Sueli Krengre Cândido, 44 anos, também ressalta a importância da merenda escolar. “Com a pandemia a gente não podia chegar perto das crianças, então ficou difícil de ajudar”, conta. Sueli também conta que houve uma articulação para marcar dias e horários para buscar o material de estudo e um lanche, entretanto muitas crianças não apareciam. “Hoje retornamos as aulas e ainda há falta de alunos por vários motivos, entre eles os pais que trabalham fora. Outros pedem para que os filhos ajudem nos trabalho, alguns estão nas colheitas e podas, então essas crianças acabam ficando com os avós em outras comunidades.”
Na Escola Estadual Indígena Toldo Campinas, também no Rio Grande do Sul, as aulas presenciais retornaram no início de agosto deste ano. Mas, segundo o professor Lairto Mello, da comunidade Kaingang na Terra Indígena Guarita, a Secretaria de Educação, a Seduc, não deu respaldo para a segurança, apenas foi determinado que voltassem. Mello complementa que quando se fala de “educação indígena” existe uma omissão no Estado e faltam compreensão, espaços para dedicação dos alunos às atividades e capacitação da classe docente.
No Rio de Janeiro, até a agricultura de subsistência indígena está prejudicada. “Tem a aldeia Itaipu que não tem terra para plantar. Algo que é problemático, pois a lavoura é um trabalho coletivo. Para o índio quando ele não está forte para fazer a colheita ou comprar comida, ele morre. Não há uma política pública de segurança alimentar”, constata o ambientalista Sergio Ricardo, membro do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas (Cedind-RJ). Segundo ele, há uma crise sanitária nas oito aldeias do Rio, com ausência de saneamento básico. “Foi feito um só reservatório de água neste ano, na aldeia Itaxim Mirim Guarani Mbyá, em Paraty. Em Itaipu, não tem fonte de rio, então eles dependem do vizinho para ligação da bomba”, conta.
Esta reportagem foi produzida por meio do projeto Sala de Redação, desenvolvido pela Énois, um laboratório de comunicação que trabalha para impulsionar diversidade, representatividade e inclusão no jornalismo brasileiro. Confira as metodologias na Caixa de Ferramentas. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre jornalistas dos veículos Maré de Notícias (RJ), Nonada (RS), O Povo (CE), Expresso na Perifa (SP) e Sul21 (RS)