Quando dizemos que o racismo é estrutural queremos dizer que, se tudo acontecer dentro de uma normalidade, o resultado vai sim ser racista
Joel Luiz Costa é advogado da favela do Jacarezinho, cofundador e coordenador executivo do Instituto Defesa da População Negra (IDPN)
Uma mulher, de tez negra retinta e roupa humilde, bebe água em um copo de plástico no corredor das varas criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Por um instante ela se descuida, derruba o copo molhando todo o chão aos seus pés. No mesmo momento ela é tomada por um nervosismo comum, aquele que nos abate logo após a sensação do cometimento de um erro. Sem pensar muito, ela se vira a uma outra mulher negra que a acompanha e pergunta “Onde será que consigo um pano de chão para limpar isso aqui?”.
No país que tem como fato histórico mais longevo a escravidão e o escravismo, raça não é um recorte. A sociedade de classes brasileira se estrutura a partir da categoria raça no pós-escravidão, e com objetivos claros de manutenção de uma estrutura racial de supremacia branca, desenvolvida ao longo dos 388 anos em que pessoas negras eram objetificadas e desumanizadas, sob as barbas (literalmente, afinal, o Estado tinha sexo) do Estado.
Quando dizemos que o racismo é estrutural queremos dizer que, se tudo acontecer dentro de uma normalidade, o resultado vai sim ser racista. O racismo não é exceção, e sim o resultado da normalidade da vida socioeconômica brasileira pós-escravismo.
O Brasil que possui 56% da sua população autodeclarada negra — grupo que compreende os pretos e pardos, conforme adotado pelo IBGE — tem uma desigualdade racial generalizada. Dentro dessa desigualdade, entretanto, temos diferenças estaduais e regionais, foi o que constatou o jornal Folha de S. Paulo no estudo que elaborou o Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer) e apontou que os estados das regiões Sul e Sudeste apresentaram maior desequilíbrio, sendo São Paulo o estado mais desigual do país, enquanto também é o mais rico. Um triste, porém sintomático, paradoxo.
Se no principal estado do país (a partir de uma análise financeira e populacional) há a maior concentração de pessoas brancas no topo da pirâmide financeira e social, em detrimento das negras, e as “principais profissões”?
A pesquisa do Perfil Sociodemográfico de Magistrados Brasileiros realizada em 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra os seguintes dados em um universo de 18 mil juízes e juízas:
Em um universo de 18 mil juízes e juízas
A sub representatividade impressiona — e envergonha. Vale lembrar que, a depender da região, ser pardo traz facilidades muito próximas das experimentadas pela branquitude, em razão do que chamamos de passabilidade, em comparação a pretos e/ou negros retintos. Informações das principais cortes do Brasil impressionam ainda mais:
Na outra ponta da lança temos um sistema prisional que reflete a mesma realidade sob outro ponto de vista: se a população negra está sub representada nas instâncias julgadoras do sistema de justiça, ela se faz representada em excesso na população prisional, objeto de atenção dos brancos de toga:
Os motivos que levaram e mantêm essa distorção são diversos, porém, no ponto de partida temos o escravismo que forjou o país e produz efeitos até hoje. Por isso a afirmação de que o racismo é estrutural, e que, em condições normais de temperatura e pressão, o resultado de uma atividade do Estado executada sem o devido cuidado de políticas públicas afirmativas será racista. Como escancara a composição dos Tribunais de Justiça apresentada acima.
Você deve estar se perguntando porque eu iniciei o texto com uma história e não mais tratei dela. Pois então, caro leitor e cara leitora, eu precisava te confrontar com os dados posteriores para voltar ao ponto de partida.
A exclusão da população negra — e seu consequente distanciamento dos espaços jurídicos — é de tamanha proporção que impacta em todo o exercício jurisdicional ofertado no Brasil. Quando falamos de sistema de justiça o encarceramento em massa da juventude negra é o principal problema, mas não o único.
Quando falamos de sistema de justiça o encarceramento em massa da juventude negra é o principal problema, mas não o único
Ademais, toda essa distorção gera no grupo que compõe 56% da população um sentimento de não lugar ao adentrar os corredores dos fóruns e tribunais. Seja pela senhora que queria limpar um chão pelo qual ela já paga pela limpeza, seja por este advogado que vos fala, que em dez anos de vida profissional nunca despachou ou fez audiência com um juiz ou juíza negra na primeira instância. Posso afirmar com toda certeza, que esse monopólio do sistema de justiça pela branquitude impacta em toda a cadeia de prestação de serviço jurisdicional. Seja no acesso à justiça para a defesa de um direito, seja na execução de uma defesa quando se figura no campo do suposto autor do fato.
Em dez anos de vida profissional, o advogado que vos fala nunca despachou ou fez audiência com um juiz ou juíza negra na primeira instância
Absolutamente, não acreditamos na representatividade vazia, há necessidade de que as pessoas negras envolvidas num projeto político de emancipação coletiva ocupem esses espaços e sejam molas de mudanças estruturais.
Precisamos de um sistema de justiça que reflita a composição racial, de gênero, orientação sexual e demais filtros socialmente construídos que dividem a sociedade que esse sistema busca tutelar. É nesse espaço que o Instituto de Defesa da População Negra, organização criada em 2020 no Rio de Janeiro, visa atuar. O IDPN tem como objetivo que o sistema jurídico tenha na sua composição, 56% de pessoas pretas ou pardas, e não só nas funções operacionais, mas sim decisórias. Para que Joaquins e Carlos não sejam exceções que confirmam a regra. E que mulheres negras como Livia Vaz e Thula Pires tenham o reconhecimento que merecem, e ocupem as fileiras mais altas da estrutura jurídica, tal qual sua atuação e capacidade técnica legitimam.
Como muito bem dito pela Coalizão Negra por Direitos, enquanto houver racismo não existirá democracia.
JOEL LUIZ COSTA
É advogado da favela do Jacarezinho, defensor dos direitos humanos, cofundador e coordenador executivo do Instituto Defesa da População Negra (IDPN), instituição em prol da equidade racial nas carreiras jurídicas, e da defesa da população negra. Integra a Coalizão Negra por Direitos, a frente Favelas na Luta, a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e da Rede de Apoio à População Periférica (Rapp). Fundou Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem (Nica), um espaço de fomento à educação e multiplicação de conhecimentos na favela do Jacarezinho. É ex-diretor da Rede Reforma.