Fortaleza é uma das capitais mais amigas dos ciclistas, segundo levantamento feito pelo Mobilidade Estadão. Foto: Divulgação/Prefeitura de Fortaleza
Como avaliar se as cidades são amigas dos ciclistas? Quais são os critérios que determinam a qualidade da experiência de uma pessoa que opta pelo modal? Para descobrir os destaques de mobilidade ativa no Brasil, a reportagem do Mobilidade Estadão utilizou dados do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) e da Aliança Bike.
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Inicialmente, a ideia era analisar o Brasil na totalidade. Porém, a falta de dados estruturados das cidades nos levou a optar pelas 26 capitais do Estados brasileiros mais o Distrito Federal.
Por meio da plataforma MobiliDADOS, desenvolvida pelo ITDP Brasil, coletamos as seguintes informações: proximidade da população a infraestrutura viária, proximidade das mulheres negras à malha cicloviária, menor taxa de mortalidade de ciclistas em acidentes e menor taxa de internações de ciclistas.
Além desses critérios, utilizamos a base de dados levantada pela Aliança Bike que contabiliza o aumento da malha cicloviária das capitais de 2023 a 2024. A amplitude dos dados analisados busca compreender a dinâmica da mobilidade ativa das capitais como um todo.
“Para mim, amiga da bicicleta é uma cidade que tem um pacote de ações para estimular o uso da bicicleta. Ela não é uma cidade que só que tem infraestrutura’, explica a especialista em mobilidade ativa do ITDP, Danielle Hoppe.
A seguir, confira a análise de cada um desses critérios e veja as dez cidades melhores ranqueadas em cada um deles.
O indicador que contabiliza a proximidade com a infraestrutura viária foi desenvolvida pela ITDP para mensurar a distribuição da rede cicloviária das cidades. Conforme Danielle, o critério passou a fazer parte do MobiliDADOS como uma evolução do que se media antes, a quilometragem dessa infraestrutura cicloviária.
“[Foi] uma tentativa nossa de qualificar um pouco o debate, porque não adianta a gente dizer que a cidade tem 1.000 km de infraestrutura cicloviária, se a gente não sabe onde está localizada, se ela realmente está atendendo a população”, defende a especialista.
No Ceará, a capital Fortaleza é destaque, com 56% da população próxima da infraestrutura cicloviária. Na sequência vem Vitória (50,30%), no Espírito Santos; Recife (37,29%), em Pernambuco; Belém (36,69%), no Pará; Florianópolis (32,36%), em Santa Catarina. Para fechar as dez cidades com os maiores percentuais: Brasília (31,69%), Aracaju (28,53%), São Paulo (27,73%), Salvador (26,44%) e Curitiba (22,05%).
Já os destaques negativos são: Manaus (2,54%), Porto Velho (4,34%), São Luís (6,17%), Macapá (7,51%) e Rio Branco (9%).
O segundo critério que ajuda a entender a “amizade” que as capitais têm com os ciclistas é a proximidade da malha cicloviária das mulheres negras. Isso porque as bicicletas são veículos baratos, de baixo custo, considerado um meio de transporte democrático e com potencial de reduzir desigualdades sociais.
Além disso, Danielle pontua que as mulheres, de uma forma geral, têm um padrão de deslocamento diferente dos homens. Enquanto a rede de transporte público é desenhada pensando em horários de pico e no público masculino, com a saída e entrada do trabalho, as mulheres têm outra frequência de deslocamento.
Por exemplo, o transporte dos filhos para a escola costuma ser realizado pelas mulheres antes de ir ao trabalho. “Ela tem deslocamentos encadeados e em horário que normalmente não batem com esse horário de pico do transporte público”, explica a especialista.
Por isso, a bicicleta tem o potencial de atender essa demanda que costuma ocorrer dentro dos bairros. Já o recorte racial é importante pois as mulheres negras são as mais desassistidas no quesito educacional, salários e os próprios direitos trabalhistas. Ou seja, observar a proximidade dessas mulheres à malha cicloviária permite analisar a real eficiência do sistema cicloviário de uma cidade, que deve atender a todos, mas principalmente aqueles que mais dependem do modal.
Vitória continua em destaque no quesito proximidade da população com a malha cicloviária. No caso das mulheres negras, a capital do Espírito Santo ocupa a primeira posição com 32,91%, seguida de Belém (30,25%), Brasília (25,86%), Aracaju (23,42%), Palmas (19,50%), Salvador (19,30%). Em sequência vem Recife (17,24%), João Pessoa (16,43%), São Paulo (15,80%) e Florianópolis (15,75%)
Neste critério, é possível observar a liderança das capitais do Nordeste. Entretanto, as cidades nortistas de Macapá (2,07%), São Luís (2,11%) e Manaus (2,49%) estão no fim da lista.
Aliado à distribuição da rede cicloviária, o critério da segurança é essencial para avaliar a amizade das cidades com os ciclistas. Embora observar as mortes de ciclistas no trânsito seja tópico nada amigável, ele aproxima a análise de outro critério, a velocidade máxima permitida nas vias arteriais das capitais. “O principal fator é a velocidade”, ressalta Danielle, do ITDP.
Para ela, as velocidades máximas presentes no Brasil estão desatualizadas. Por isso, os acidentes fatais são tão altos, ela opina. “Eu entendo que uma cidade amiga do ciclista é uma cidade que é agradável de pedalar, não é simplesmente uma cidade onde a pessoa não morre”, pontua Danielle.
Enquanto Manaus ocupa a lanterna da proximidade da população com a malha cicloviária, a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes também é baixa, com 0,04. Em seguida vem Belém (0,20), Rio de Janeiro (0,21), São Paulo (0,22), Salvador (0,24), Rio Brando (0,24), Maceió (0,29), São Luís (0,45), Cuiabá (0,48) e Fortaleza (0,52).
Neste critério, a capital do Ceará é destaque, pois, além de apresentar uma alta proporção de proximidade da população com a malha cicloviária, tem uma taxa de mortalidade entre as dez menores do País.
Entretanto, Vitória, que é destaque nos critérios anteriores, tem a maior proporção de mortalidade de ciclistas, com 5,14. Em seguida vêm Aracaju (2,68) e Teresina (2,07).
Conforme Danielle, esse critério é bastante desafiador de obter dados, pois eles não costumam ser contabilizados com a distinção entre pedestre ou ciclista. Além disso, ela ressalta que falta de sistematização na coleta dessas informações.
“Não estamos falando de cidades pequenas, a gente está falando de cidades que deveriam ter isso sistematizado. Então, esse é um dado relativo”, ela orienta.
As capitais com as menores taxas de internação são: São Luís (pouco mais que 0), Manaus (0,05), Maceió (0,10), Belém (0,23), Florianópolis (0,37), Recife (1,01), Salvador (1,16), Rio de Janeiro (1,64), Cuiabá (3,07) e São Paulo (5,38). Embora as capitais do Maranhão e do Amazonas apresentem as menores taxas de internação, as cidades estão no fim da lista de proximidade da população com a malha cicloviária.
Por outro lado, a capital com a maior proporção de internações é Vitória, com 58,23 de acidentes que causaram a internação de ciclistas por 100 mil habitantes. Em seguida vêm Goiânia (46,97), Natal (36,47), Campo Grande (34,97), Belo Horizonte (23,93), Porto Velho (22,81) e Teresina (20,55).
Outro ponto importante para entender quão amigável uma cidade é aos ciclista é analisar os investimentos na malha cicloviária. Para isso, a Aliança Bike oferece um índice de aumento dessa malha. Neste caso, optamos pela evolução de 2023 para 2024.
Para Danielle, além da evolução da infraestrutura, é necessário observar onde essas ciclovias e ciclofaixas são implementadas. “Isso passa muitas vezes por implementar a infraestrutura em vias estruturantes, ou em vias que não são laterais”, ela explica. “O ciclista tem o mesmo desejo de uso da cidade que o motorista. Ele quer acessar os mesmos lugares”, ela reforça.
Por isso, Danielle acredita que as vias arteriais da cidades devem ser readaptadas para receber todos os modais. Isso porque ali estão as melhores conexões, que vão ajudar o ciclista a chegar ao ponto que ele quer. “Por isso que falar só de extensão não é bom”, pontua ela.
A capital que mais investiu em malha cicloviária de 2023 a 2024 fica em Goiás. Goiânia apresentou aumento de 66,01% de infraestrutura. Além dela, Palmas (3,75%), Belém (29,25%) e Maceió (27,58%) apresentaram aumento superior a 20%. Fora Palmas e Belém, Goiânia e Maceió apresentaram índices baixos de proximidade da população com a malha cicloviária. Esse aumento demonstra um movimento municipal para melhorar a situação da mobilidade ativa das capitais.
Embora a maioria das cidades analisadas tenham apresentado alguma evolução, Rio Branco, Macapá, Porto Velho, Teresina e São Luís não investiram no setor de 2023 a 2024. Além disso, Vitória reduziu a malha cicloviária em 2,23%.
A reportagem do Mobilidade Estadão entrou em contato com as gestões das 27 capitais para questionar se existem medidas que visam reduzir a velocidade máximas nas principais ruas e avenidas. Até a publicação desta matéria, Porto Velho, João Pessoa, Palmas, Maceió, Belo Horizonte, São Paulo e Boa Vista retornaram.
Na capital de Rondônia, a Secretaria Municipal de Trânsito, Mobilidade e Transportes (Semtran) informou que desenvolve projetos para substituir semáforos por rotatórias para controlar a velocidade. Além disso, a prefeitura de Porto Velho afirmou que vai ativar 15 radares em março. Somado a isso, a capital estuda viabilizar a interligação de todas as ciclofaixas da cidade e ampliação da malha.
Na Paraíba, a Superintendente Executiva de Mobilidade Urbana de João Pessoa (SemobJP) afirma incentivar o uso de bicicletas por meio das pistas de uso exclusivo para o modal e corredores cicloviários em vias importantes da cidade. Ademais, a cidade deve implantar mais 97 quilômetros de malha e alega monitorar 80 pontos da capital com fiscalização eletrônica. “São flagrados os condutores que porventura excederem a velocidade máxima permitida das vias. É possível variar, dependendo do local, de 30 km/h a 50 km/h”, diz a nota.
Já no Tocantins, Palmas instituiu um decreto com “diretrizes para a redução das velocidades máximas nas principais vias da cidade, com o intuito de aumentar a segurança viária e incentivar o uso de bicicletas como meio de transporte sustentável (modal ativo)”, diz a prefeitura. Além disso, a prefeitura tem uma série de metas para aumentar o uso das bicicletas e a rede cicloviária.
Em Alagoas, o Departamento Municipal de Transportes e Trânsito (DMTT) de Maceió informa que tem iniciativas para o controle de velocidade em importantes vias da cidade onde há ciclovias. Além disso, a prefeitura da capital ressalta que a malha cicloviária da cidade saiu de 30 km para 95 km nos últimos quatro anos.
Já em Minas Gerais, Belo Horizonte afirma desenvolver medidas para aumentar a segurança viária. Conforme a prefeitura, existe uma proposta para estabelecer velocidade máxima em todas as vias urbanas da cidade em 60 km/h e ampliar as áreas com limite de 30 km/h, as chamadas “Zonas 30”, além da fiscalização eletrônica.
Por fim, a prefeitura de São Paulo, por meio da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), afirmou que reduziu, no ano de 2021, a velocidade máxima de 24 importantes vias da cidade, passando de 50 km/h para 40 km/h.
“Atualmente, nenhuma rua ou avenida da cidade de São Paulo, com exceção das marginais, Av. do Estado, trecho inicial da Av. Prof. Abraão de Moraes e Av. 23 de Maio, tem velocidade máxima permitida acima de 50 km/h. Sendo as locais limitadas a 30 km/h, as coletoras a 40 km/h e as arteriais a 50 km/h”, alegou em nota.
Em Roraima, a capital Boa Vista disse em nota que a mobilidade e segurança no trânsito sempre foram prioridades. Isso se reflete na largura das ruas e planejamento da cidade. De acordo com a prefeitura, são 50 km de ciclovias e espaços compartilhados com pedestres. Além disso, a velocidade média das ruas da cidade é de 40 km/h e das avenidas de 50 km/h. “Conforme estudos técnicos, constatada a necessidade, essa velocidade pode mudar”, afirmou a gestão.
Conforme Danielle, uma cidade só pode ser considerada amiga do ciclista se unir ações de infraestrutura, proximidade dessa malha com a população e a segurança, diretamente ligada com a velocidade máxima permitida em vias que tem espaço dividido entre os diversos modais. “Só o fato da cidade ter feito alguma ação de redução de velocidade, ter começado a olhar para isso no contexto brasileiro, infelizmente isso já é um grande avanço”, ela opina.
A especialista em mobilidade ativa cita o exemplo de São Paulo. “A velocidade nas grandes vias arteriais de São Paulo, às vezes estruturais, hoje é de 50 km/h”, explica. “Isso ajudou muito a reduzir o número de mortes por um tempo, hoje a gente já tem um pico novo, muito devido à motocicleta”, diz Danielle.
Por fim, não há apenas um critério que ajude a determinar se uma cidade é amiga ou não dos ciclistas. Portanto, a análise multissetorial pode ajudar a compreender quais capitais caminham para instituir um espaço mais democrático à mobilidade ativa.
Por acompanhar o tema há muitos anos, Danielle cita alguns casos de sucesso, que unem a segurança viária com iniciativas governamentais, como a que reduziu a velocidade de avenidas em São Paulo.
Além da capital paulista, Danielle cita Fortaleza. “A capital cearense é uma cidade que vem fazendo isso com mais consistência desde 2014, 2015. Ela vem investindo muito em transporte público, em segurança no trânsito e infraestrutura viária”, conta ela.
Conforme a especiaiista, é o pacote de ações realizado pela gestão municipal que estimula o uso das bicicletas e permite que ela possa ser chamada de “amiga” dos ciclistas. “Fortaleza também tem sistema integrado com o transporte da cidade. Quem tem o bilhete único não paga”, ela conta sobre as bicicletas compartilhadas. Para ela, esse tipo de iniciativa passa uma mensagem para a população de que a bicicleta tem espaço ali.
Danielle acredita que são as prefeituras as principais responsáveis por atrair novos usuários de bicicleta por meio da integração com o transporte público. Apesar de citar os bons exemplos de algumas capitais, Danielle viu o cenário positivo mudar nos últimos anos. “Acho que teve um boom da bicicleta há alguns anos e isso vem sendo esquecido”, lamenta.
Mesmo que algumas cidades tenham mantido alguma consistência, a lógica de que o ciclista não deve dividir o espaço com os outros modais precisa mudar. Nesse caso, ela cita o exemplo positivo de Recife, que tem adaptado as principais vias para permitir o uso seguro das bicicletas.
Além das citadas por Danielle, a reportagem elencou algumas cidades que se destacaram ou ficaram nos 15 primeiros lugares em pelo menos três dos critérios considerados (neste caso, a mortalidade e taxa de internação foram contabilizados como mesmo critério). Ainda que os índices sejam ranqueados, a lista a seguir não segue qualquer ordem pré-determinada.
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